A meio caminho da nascente do rio Araguari, em um de seus braços, num lugar ainda quase intocado pelas mãos dos homens, vivia uma comunidade de botos. As águas eram tão limpas, que era possível de ser ver o fundo de tão transparentes. Peixes e outros animais conviviam naquele paraíso em perfeita comunhão. O grupo de botos vivia como uma grande família e todos obedeciam a regras de comportamento, que haviam sido estipuladas pelo conselho dos mais velhos, que considerados por todos sábios na arte de viver, governavam a todos, sem exceção. Felipe, um boto cor de rosa, era simplesmente Lipe para os amigos e para a família. O jovem boto, desde pequeno, não concordava com muitas das imposições a que ele e os outros de seu grupo tinham que se submeter. Cada membro da comunidade tinha seus deveres e obrigações a cumprir, em prol de si mesmos e do resto do grupo. Logo pela manhã, todos os dias, eles acordavam atarefados, sempre preocupados em cumprir suas missões. Era um corre, corre o dia todo, mal paravam para se alimentar e quando o faziam, era por questão de minutos, pois não havia tempo a perder. A vida deles era tão corrida, que nunca tinham tempo para si mesmos, muito menos para se relacionar com os amigos e parentes como se deve. Lipe foi crescendo e seu comportamento na mente dos outros botos, era de alguém que não tinha mais jeito, um desajustado, um perdido na vida. Ele era incompreendido por aqueles a quem ele amava, pois tudo o que ele fazia, era sair bem cedo pelos arredores em busca de correntezas que ele adorava surfar. Era tão grande a sua paixão pelo que fazia, que ficava imaginando se um dia ele iria encontrar na vida, uma onde enorme, onde pudesse sentir todo o prazer de poder domina-la, deslizando nela, desde sua crista até onde ela terminasse. Os mais velhos, já haviam perdido as esperanças de que ele um dia mudasse e apesar de muitos conselhos e avisos sobre as conseqüências de seu comportamento impetuoso, a cada dia, mais e mais, ele sentia a necessidade de perseguir o seu sonho.
Lipe observava os outros membros de seu grupo, principalmente os mais velhos. Tudo que ele via neles, era a imagem da tristeza, da desolação e por mais que negassem, uma grande frustração. Mesmo estando todos juntos, recebendo o amor e o carinho dos parentes e amigos, Lipe sentia que lhes faltava alguma coisa. Nos olhos de cada um, havia um vazio imenso e quando eles eram questionados sobre quais eram suas expectativas para suas vidas, a resposta invariavelmente era que tudo que precisavam estava ali naquele lugar. Ele nunca conseguiu engolir esta vaga explicação e por mais que tentassem ser convincentes, não conseguiam faze-lo acreditar. Para ele viver não poderia significar somente aquilo. Tinha que haver algo mais excitante, mais gratificante para a alma e para o coração. Apesar dos contras de sempre, Lipe continuava em suas excursões pelos rios adjacentes. Ele precisava de muito mais para se sentir vivo. O tempo passou e ele agora, com 2,50 metros de comprimento, pesando 90 quilos, já era um adulto. Já fazia um bom tempo que ele não ouvia mais nãos como respostas aos seus pedidos para ir mais longe do que lhe era permitido. A única coisa que ainda faziam, era lhe dar o mesmo conselho de sempre. Ele nunca deveria se atrever a ir em direção à foz do Rio Araguari. Dizendo que ir naquela direção, era procurar a morte com as prórpias mãos. Diziam que mais abaixo do rio, havia homens maus que poderiam captura-lo, e se o fizessem, seria o seu fim. O desejo de descobrir o que realmente havia naquele lugar proibido, era para ele como um combustível que o instigava a ir até lá. Certo dia, ele se encontrou com um peixe enorme que nunca havia visto na vida e ele parecia velho e cansado. Ao se aproximar do estranho com muito cuidado, ele se apresentou, trocaram cumprimentos e começaram a conversar.
O velho peixe disse que estava vindo da foz do rio, onde tinha ido em busca de realizar um velho sonho, e em seus olhos, enquanto ele lhe contava os detalhes de sua aventura, havia uma expressão de paz e plenitude, que encantou o jovem boto. O viajante lhe disse também, que lá, ele havia encontrado a maior onda existente em todos os rios e nela, ele havia surfado, exatamente como era o sonho de Lipe. Seu jovem e intrépido coração bateu mais rápido e uma estranha sensação tomou conta de seu ser. Era uma vontade louca de ir ao encontro da tal onda que o velho peixe disse se chamar Pororoca. Lipe, o jovem e impetuoso boto cor de rosa, ao terminar a conversa com o estranho, resolveu que iria partir em busca da realização de seu sonho. Na manha do dia seguinte, mesmo contra a vontade de todos do seu grupo, ele partiu. Enquanto ele descia o rio, ia observando a paisagem ribeirinha e pelo caminho, conheceu muitos outros peixes e bichos da floresta, que ele nunca tinha visto em sua vida. A sensação de liberdade já havia tomado conta dele e o lugar onde ele vivia com os seus, já estava há muitos quilômetros atrás. Ao contrário do que lhe disseram, ele não viu nada que representasse perigo de vida durante uma boa parte de sua jornada. Contudo, ao virar uma curva do rio, ele deu de cara com um barco enorme e nele, haviam homens armados, alguns com arpões e outros que empunhavam enormes varas de pescar.
Naquele momento, ele se lembrou do que lhe disseram sobre o bicho homem, e para não arriscar, ele tentou fazer um desvio, mas foi capturado por uma rede fixa que estava armada embaixo d'água. Era final de tarde, quase caindo a noite e os homens não perceberam a movimentação da rede, e lá ele ficou. Preso sem poder se libertar e quase asfixiado por precisar subir à tona para respirar. Para sua sorte, talvez até por uma providencia divina, uma indiazinha havia percebido que ele estava preso na rede. A pequenina só esperou cair a noite e mergulhou em seu socorro. Ao alcança-lo, cuidadosamente ela cortou a rede o suficiente para ele poder passar. Quando ele conseguiu subir à superfície, já estava passando mal pela falta de oxigênio e ao respirar, foi como se tivesse renascido naquele instante. A indiazinha que estava sentada agora na margem do rio, observava seus movimentos e em seus lábios, havia um sorriso sincero de satisfação. Lipe se aproximou dela, quase tocando a margem, balançou a cabeça tentando com com isto dizer a ela que estava muito agradecido por ter sido salvo. A menina sorriu e olhando diretamente em seus olhos ,e fez um sinal para ele ir. Ele compreendeu a mensagem, e partiu.
Agora, sua viagem iria ser muito mais cautelosa. Depois de tudo que aconteceu, prevenir era melhor do que remediar. Muito longe de seu lar, há muitos quilômetros de distancia de seu povo, Lipe finalmente estava chegando ao ponto descrito pelo velho peixe, e ele estava ansioso. Feliz e ao mesmo tempo excitado, pelo que estava por vir. Sua ânsia era tão grande, que por um momento, ele pensou que tudo aquilo que o velho tinha lhe dito poderia ser mentira. Ele poderia muito bem ser um contador de estórias e seu coração ficou apertado, com a perspectiva de se decepcionar. Mesmo apreensivo, ele continuou nadando, mas agora, ele o fazia mais devagar.
As águas calmas e mansas do rio corriam lentamente rumo à sua foz, cumprindo fielmente sua rota, por vezes em linha reta, por vezes por linhas sinuosas, em meio à magnitude da floresta Amazônica, e Lipe, as estava acompanhando. Nas margens, em ambos os lados, a exuberante natureza da região mostrava todo seu encanto e sua magia. Em meio a um ambiente de paz e perfeita integração da fauna e da flora, os pássaros revoavam sobre as árvores, sobre a floresta e sobre o rio. Macacos pulavam de galho em galho, em seu alarde costumeiro. Ninhos espalhados pelas copas das arvores, davam aconchego e segurança aos pequenos filhotes recém nascidos. Em outros, futuras mamães chocavam cuidadosamente seus ovos. O som que predominava, era o do canto das aves, apenas perturbado pelo barulho dos macacos em plena euforia. Tudo parecia em completa harmonia. De repente, tudo que se pode ouvir foi o som pesado e tenso do silêncio da natureza anunciando perigo. Poucos minutos se passaram e um ruído surdo e estranho se fez sentir no ar, mas logo em seguida, novamente imperou o silêncio total. Em poucos instantes, o mesmo ruído ecoou de novo, mas desta vez, acompanhado de outros rumores desconhecidos, que para ouvidos despreparados, era como se eles fossem despedaçados no ar pelo vento, que soprava na floresta. Tanto os nativos quanto os animais da região, sabiam o estava por vir. Era a Pororoca que estava chegando no Araguari.
Como um gênio do mal que acaba de ser libertado da garrafa onde estava preso, o fenômeno causado pela atração simultânea da Terra, da Lua e do Sol se aproximava do lugar. O ruído em instantes se transformou num barulho enorme e como se fosse uma grande explosão, ecoou num rugido demoníaco que se propagou por todos os cantos. Carregando consigo, mil outros sons que se dissipavam ao longe, na imensidão da floresta sem fim. Uma onda espumante que mal se podia ver ao longe, de repente, como num passe de mágica, chegou a uma velocidade de 35 quilômetros por hora, e ela veio, transformando-se pelo caminho, num monstro, num demônio destruidor. Ela chegou com sua primeira onda afrontando, desafiando e destruindo a tranqüilidade das águas do rio, arrastando com ela, tudo que estivesse em seu caminho. Ela derrubava os barrancos das margens sem dó, nem compaixão. Aniquilava pequenas árvores e até mesmo arrancava pelas raízes outras delas, que tinham porte maior. A imensa onda, de um poder absolutamente devastador, estava passando pelo local e suas águas, já atingiam até mesmo os pequenos ninhos, que ficavam na copa de algumas arvores mais altas. A onda era de uma proporção descomunal e fazia questão de mostrar a todos, a quem quer que seja, que era ela quem comandava o show naqueles momentos de pura expressão do poder das forças da natureza.
Furiosa, a Pororoca continuava avançando rio acima, formando tubos beirando à perfeição para a alegria dos surfistas, que já tentavam dominar com suas pranchas as poderosas ondas, que agora, já se elevavam a 10 metros de largura, chegando até a 5 metros de altura, desfrutando momentos de aventura, e pura adrenalina. Em meio a uma delas, no meio das pranchas dos surfistas, lá estava ele. Lipe, o Boto cor de Rosa. Ele surfava as ondas ao lado do bicho homem, competindo palmo a palmo, pelas melhores ondas, e demonstrando sua perícia em manobras radicais, deslizando nelas, com perfeição. Para quem teve a chance de ver sua performance, sabe que foi algo de proporções nunca vistas para um animal como ele. Pegando cada onda que vinha, ele não precisava de prancha, nem equipamentos de segurança. Ele surfava apenas com aquilo que Deus lhe deu. Seu corpo e sua habilidade de nadar. Lipe, aquele jovem e intrépido boto cor de rosa, deslizava de barriga, de costas, de lado, e muitas vezes , ele conseguia pegar a crista de uma onda que se formava, e descia numa velocidade alucinante, deixando os surfistas boquiabertos, e alguns deles mais espertos, até conseguiam fazer manobras parecidas, observando ele surfar. Para ele, aquilo sim era vida. O que estava fazendo naquele instante, era por puro prazer de viver. Não fazia a menor diferença estar ou não dividindo aqueles momentos com os homens ou saber que alguém o estava observando. Também não fazia diferença se o estavam elogiando ou criticando.
Naqueles momentos, em meio à fúria da pororoca que avançava numa velocidade incrível, e sem parar, para ele, o tempo havia parado de correr. Ele vivia cada segundo intensamente, pois sendo um boto diferente dos outros, ao invés de querer passar o resto de sua vida nadando em águas mansas e rasas, tudo que ele mais queria, era realizar os seu sonho de viver intensamente e conhecer novas emoções. Monotonia e marasmo, eram palavras que ele nunca admitiu em seu vocabulário, na sua vida. Lipe decidiu que não iria envelhecer e morrer sem ter vivido plenamente, como não viveram os outros de sua espécie, tão ameaçada da extinção. Ele perseguiu seu sonho e mesmo tendo passado por grandes dificuldades para alcança-lo, um dia ele tinha certeza de que iria conseguir. Finalmente tinha chegado para ele, a hora de realiza-los. E ele conseguiu. Um sentimento de plenitude e uma sensação plena de realização pessoal, tomaram conta de seu ser. Do mais fundo de seu coração, ele soube que se tivesse ouvido os conselhos dos mais velhos de sua espécie, seguindo cegamente as regras impostas por eles e pelo sistema, ficando lá no lugar onde nasceu, executando as mesmas tarefas e movimentos pacatos e mecânicos pelo resto de sua vida, ele iria morrer, sem ter vivido.
Para Lipe, viver nunca significou ter que ser obrigado se render à vontade dos outros. Para ele, viver era se atrever a enfrentar o desconhecido. Era ter coragem de se arriscar e se atrever a descobrir, se aquilo que nos dizem a respeito das coisas, são realmente a verdade, ou se foram apenas invenções, criadas para nos cegar. Numa tentativa de nos manipular e impedir que possamos descobrir que a verdade, é bem diferente daquilo que nos dizem. Lipe nunca desistiu de sua determinação de perseguir o seu sonho, de correr atrás da realização daquilo que mais desejava na vida, mesmo sendo criticado sem dó nem perdão, ele nunca desistiu e ele conseguiu. Quando a ultima onda da pororoca acabou e as águas do rio voltaram a correr calmas, em direção à sua foz, ele se despediu de seus colegas surfistas, dando saltos para fora da água em volta de onde eles estavam com suas pranchas. Feliz por ter alcançado o seu objetivo, ele nadou rio acima, na direção de onde ficava o seu lar. Ele estava com saudades dos seus e mesmo sabendo que eles talvez nunca mudassem sua maneira de pensar ele iria tentar abrir os olhos de todos os componentes de seu grupo. Desde aquele dia, entre os meses de janeiro e abril, todos os anos, quando o espetáculo da pororoca se repetia, a presença de Lipe o boto cor de rosa era uma constante, e assim foi, ano, após ano, até que um dia, já velho, cansado e sem forças nem mesmo para nadar por curtas distancias, ele partiu para a viagem final, mas sua passagem para o outro lado não foi triste, muito pelo contrário. Lipe morreu feliz.
Em seu semblante, havia uma expressão de paz e contentamento, quando ele fechou os olhos pela ultima vez. Bem diferente de todos os outros de sua espécie que ele viu morrer. Todos eles eram botos tristes, que nunca souberam na vida o que era sorrir de verdade, sorrir de contentamento, de alegria, e partiram, com o mesmo vazio que carregaram nos olhos por toda a vida, executando sempre as mesmas tarefas e obedecendo cegamente às determinações impostas pelo grupo, e pelos mais velhos, acomodados na situação em que viveram. Renegaram seus próprios sentimentos, por toda uma existência, achando que assim é que era a maneira certa de viver. Eles se foram como se não tivessem vivido na vida. Partiram como se fossem apenas peças de um grande cenário, onde nunca tiveram a oportunidade de atuar efetivamente, no maior de todos os espetáculos. O espetáculo da vida. Mas Lipe não. Ele decidiu viver na expressão da palavra. Ele quis ter um papel importante, não apenas ser um objeto do cenário, no palco de sua existência.
O espetáculo em que ele atuou por toda a sua vida, desde que era muito jovem, foi um grande sucesso e permaneceu em cartaz para todo o sempre, nas mentes e nos corações daqueles surfistas, que maravilhados com sua presença ao lado deles, compartilharam com ele, as grandes manobras radicais que fizeram juntos.
Para eles, foram momentos mágicos, mas muito reais, vividos intensamente, nas cristas das ondas da pororoca, na foz do rio Araguari...
Autor: José Araújo
Fotografia: Boto cor de rosa do Amazonas