Os primeiros sinais de claridade começavam a aparecer. O sol já atravessava timidamente com seus raios o denso nevoeiro no bosque de Eucaliptos que ficava próximo à nossa casa. Um novo dia de um mês de um setembro qualquer, que ficou perdido no tempo há muitos anos atrás estava nascendo. Enquanto a cerração ainda cobria toda a várzea onde nós morávamos, mal dava para se enxergar pouco à frente de nós enquanto caminhávamos em direção à margem do rio Tietê. Tínhamos que atravessar de canoa para o outro lado, com o auxílio de um canoeira, coisa que fazíamos todos os dias, sem nunca falhar. Aquela era a minha rotina diária por todo o período escolar.
Subi na canoa e quando saímos de nosso lado da margem e chegamos ao meio do rio, não se via terra para qualquer lado que se olhasse, somente a densa cerração causada pelas matas e pelas águas do rio e das lagoas adjacentes, porém nosso canoeiro, seu Chico, experiente como era, podia atravessar o Tiete em qualquer tempo e como ele sempre dizia, até de olhos fechados e assim, desde que eu me entendi por gente, tinha plena confiança naquele mineiro de Bom Despacho, que nos tratava a com muito respeito e cuidado.
Eu entrava na escola às sete horas e para chegar lá havia uma longa caminhada que durava mais de uma hora, andando pelo meio do mato, muitas vezes enxergando apenas onde pisava, beirando por vezes a rodovia, outras a estrada de ferro quando chovia demais e passando por entre industrias que começavam a se instalar na cidade de Guarulhos, beirando a Rodovia Presidente Dutra, que na época tinha apenas duas pistas, ladeadas por lagoas e brejos traiçoeiros que sempre tiravam as vidas daqueles que sofriam acidentes de transito na rodovia e tinham seus veículos atirados em suas águas e lamas, que sem dó nem piedade os sugavam para suas profundezas para nunca mais voltar.
No começo, minha mãe me levava desde a travessia do rio e da rodovia, até a porta da escola e depois ia me buscar, mas isto não durou muito tempo. E eu tinha que ir e vir sozinho, só tendo a ajuda de um adulto nas travessias do rio.
Eu tinha medo no começo, mas com o passar do tempo fui me acostumando e em determinado momento, já não representava mais nenhum desafio ou risco para mim, pelo menos era o que eu pensava.
Naquela manhã de setembro, quando sai de casa rumo à escola, nem de longe poderia imaginar que a rotina diária seria rompida com um acontecimento que marcou minha infância e que com certeza irei relembrar dos fatos que se seguiram, até o fim de meus dias.
Havia uma fábrica de tintas pela qual eu passava e geralmente meu trajeto era por trás dela, beirando os muros num estreito caminho que separava a construção do mato cerrado e naquele dia, de longe ouvi gritos de homens dizendo algo que eu não conseguia entender.
Quando fui me aproximando, vi que havia vários deles em cima do muro da fábrica que por sinal era bem alto e todos estavam atirando pedras em alguma coisa bem no lugar em que eu teria que passar.
Aproximei-me devagar e os homens perceberam minha presença, mas mesmo assim continuavam a jogar pedras e foi então que eu vi, lá bem no meio do caminho, todo encolhido e ferido, um pequeno ratinho, indefeso, à mercê da maldade daqueles homens que pareciam ter prazer no que estavam fazendo. Era como se estivessem disputando para ver quem mataria primeiro o pobre bichinho.
Naquele instante, percebendo o fim iminente do ratinho, uma coragem imensa me invadiu. A despeito do que poderia acontecer comigo com eles jogando pedras lá de cima, corri em direção ao pobre animalzinho, enquanto eles gritavam, para que eu saísse da frente, por que se não o fizesse, eles iria atirar pedras em mim também.
Não senti medo de nada. Nunca tive tanta coragem em minha vida. A única coisa que me importava naquele instante era salvar a vida do ratinho. Eu precisava salvar o pequenino e levá-lo para bem longe do alcance daqueles desalmados.
Sob gritos de ameaças, de ser xingado com muitos palavrões e até mesmo tendo recebido algumas pedradas, peguei o pobrezinho e sai correndo pelo meio do mato, protegendo o pequeno corpinho entre minhas mãos e enquanto corria, só pensava no bem estar do ratinho. Lembro de não ter sequer olhado para trás. Eu corria com ele em minhas mãos desesperadamente, sem mesmo saber exatamente para onde estava correndo, pois nunca havia me atrevido a entrar naquele matagal.
Após muito correr em voltas, acabei saindo de novo em meu caminho, bem longe daquele muro. Foi ai que parei para ver o que poderia fazer por ele e logo percebi que haviam acertado uma pedra na cabeça do ratinho que o havia atordoado, por isto estava lá, parado e indefeso, sob a mira e a ira daquelas pessoas sem coração.
Os córregos eram comuns pelo caminho e mesmo fontes de águas cristalinas podiam ser encontradas às margens da estrada de ferro e foi numa delas que lavei a cabecinha dele. Enrolei-o em meu lenço e segui meu caminho rumo à escola. Enquanto caminhava eu ia imaginando em minha inocência, onde eu poderia esconde-lo até o final das aulas, pois tinha intenção de leva-lo para casa, pois no meio de tantos bichos que criávamos lá, de tantas espécies diferentes, um a mais, não poderia fazer diferença nenhuma.
Não conseguindo encontrar nada para poder protege-lo, muito menos um lugar seguro para colocá-lo, não tive opção a não ser ficar ali, na frente da escola com o ratinho dentro da minha mochila, rezando para que alguma solução surgisse por milagre. Foi então que vi um outro garoto mais velho que morava numa chácara, próximo à escola e então resolvi pedir a ele que guardasse o ratinho para mim, até que eu pudesse pegá-lo ao final das aulas.
Na minha ingenuidade de criança, pedi a ele que o fizesse e mais do que de imediato ele aceitou. Havia em seu rosto um sorriso que no momento não compreendi bem, mas não tive tempo nem malicia para levar aquilo em consideração.
Quando deu o sinal de saída da escola eu não via a hora de pegar o ratinho e levá-lo embora comigo. Eu queria cuidar dele, dar comida, tratar de seus ferimentos. Queria poder arrumar um lugarzinho em nosso quintal onde ele pudesse viver em paz. Qual não foi minha surpresa ao sair do portão da escola para a rua, quando vi uma roda de meninos grandes gritando agitados, “Mata, mata, mata!”...
Aquela cena com os meninos, mesmo de longe, instintivamente me fez lembrar dos homens lá naquele muro e imediatamente soube o que estava acontecendo. Era o ratinho que eles estavam matando!
Os meninos jogaram pedras no bichinho até estraçalhar seu corpinho frágil e indefeso. Não houve nada que eu pudesse fazer, a não ser chorar. Chorar a dor de ter confiado naquele menino a quem eu entreguei em confiança o pobre ratinho. Eu tinha acreditado plenamente em sua palavra.
Tudo que aconteceu naquele dia ficou marcado em minha mente desde então. Mesmo após tantos e tantos anos, ainda hoje, eu me pego a lembrar dos homens no muro, do ratinho e dos outros meninos que o mataram por puro prazer e dos meus sentimentos de revolta e repugnância pelas atitudes daquelas pessoas, tanto adultos, quanto crianças, que significaram tanto em minha vida.
Na vida, o ser humano age muitas vezes irracionalmente, de uma forma que nem mesmo os animais o fazem usando o instinto. Mesmo que a humanidade os chamem de animais irracionais, talvez agindo por instinto, matando apenas para se defender ou para se alimentar para sobreviver, eles sejam muito mais racionais que muitos seres que se dizem “humanos”.
O tempo passou, eu cresci, amadureci, os tempos são outros, mas o homem parece não ter evoluído. A cada dia ele parece regredir ainda mais e tenho visto tantos e tantos casos de seres humanos matando animais, até mesmo os mais inofensivos como pássaros, gatos, cachorros e o corte indiscriminado de imensas quantidades de árvores, apenas pelo prazer de matar, de tirar uma vida, não só por esporte ou dinheiro, o que já é inadmissível, mas por pura maldade, pelo simples prazer de destruir o maior bem que recebemos de Deus.
Viver e deixar viver, respeitando a vida de todos os seres, sejam humanos ou não, protegendo a fauna e a flora de nosso planeta contra nós mesmos, é a única maneira de garantirmos nossa existência futura na face da Terra.
O ratinho perdeu sua vida, partiu para sempre, mas deixou marcas profundas em minha personalidade, em minha vida. A dor da perda e a revolta pelo que meus colegas de escola fizeram com o pobre animalzinho serviram para mim com uma lição de vida.
Aprendi a ser cauteloso mesmo com os da minha própria espécie, pois por trás de um par de lindos olhos, ou de um lindo sorriso, pode haver um animal perigoso, um ser realmente irracional.
Autor: José Araújo
6 comentários:
Eu fiquei emocionada porque eu tenho o maior carinho pelos animaizinhos
porque eles são indefesos.
Eles são criação de Deus e deus fica muito triste quando alguém maltrata um animal, e infelismente tem muitas pessoas maldosas neste mundo, eu mesma ja presenciei muitas maldades
contra os animais, contra as plantinhas, isto tudo para mim são pessoas que não tem nem um pouquinho de sentimento, porque quem tem sentimento não faz isso de jeito nenhum
José Araujo você esta e parabéns
porque esta sempre emocionando e ajudando as pessoas neste mundo cheio de maldade!!
Eu acho que todas as pessoas deveriam chegar até aqui no seus contos para pode refletir um pouco
e pensar duas vezes antes de praticar tal ato.
josé Araujo é lindo o seus contos eles são pura realidade! Amigo querido!! continue sempre este ser maravilhoso que você sempre foi. Beijo no coração
da ir.
racionalidade
que
nos
ator.doa
Realmente, creio mesmo que muitos de nós, em determinadas situações, nos tornamos irracionais...
Lendo o que voce escreve, compreendo muito bem o amor que meu irmão sente por você!
Perfeito como sempre!
Abração do amigo de sempre e que o admira demais!
Não é sem motivos que cada vez mais gente Lê José Araújo!
Cada vez que venho aqui ler seus trabalhos me surpreendo com coisas lindas como "Animais Racionais"!
Abraços e paz!
Nossa!
Que bom ter alguem como você para nos lembrar que por trás de um par de olhos bonitos e de um lindo sorriso, pode haver um animal irracional.
No fundo, no fundo todos sabemos disto, mas por questão de comodidade e suposta segurança, nos mantemos calados. Não dizemos o que é preciso a determinadas pessoas "irracionais" e convivemos com elas por obrigação.
Mais cedo ou mais tarde, elas tentam nos prejudicar, nos eliminar de seus caminhos e só aí, depois de feridos, é que nos lembramos da irracionalidade delas.
Parabéns pelo texto que com o sempre é fenomenal!
Nós seres humanos estamos nos transformando em predadores. O pior é que está virando rotina, uma coisa normal.
Quando vemos um animalzinho doente e indefeso, quantas pessoas dizem: deixa morrer, menos um para dar despesa.
E ali fica o animal sofrendo esperando a morte ou uma alma caridosa para salvá-lo.
Infelizmente o coração do ser humano(é claro que nem todos) está ficando duro como pedra, as emoções já são bem poucas. O dia dia parece mais uma luta para se manter vivo e não ligam para o próprio semelhante quanto mais para um animalzinho indefeso.
O mundo precisa mudar e bem depressa e isso tem que começar no seio da família. Assim teremos crianças amorosas e piedosas. Amando sem reservas a natureza que Deus nos deu por amor.
Obrigada José, por este texto que me levou para uma bela reflexão.
Beijo grande meu querido amigo.
Marilene.
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