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domingo, 28 de junho de 2009

RE - APRENDENDO A VIVER...



Paris. Tudo começou num dia qualquer do mês de agosto, há não muito tempo atrás. Sua vida antes vazia e sem graça começou a mudar como que por encanto, desde o dia em que chegou à cidade luz.

Sucesso, realização profissional, dinheiro, status, estabilidade financeira. Ele achava que tinha tudo que precisava na vida e era no trabalho duro e constante, que Gabriel achava que um dia iria encontrar finalmente a tão sonhada felicidade, mas dentro dele, mesmo que ele não admitisse isto, nem para ele mesmo, havia um enorme vazio que ele não sabia como preencher.

Por vezes vagamos por caminhos errados à procura de sermos felizes. Andamos longas distancias. Tropeçamos em tantas pedras. Escorregamos e quase caímos em despenhadeiros profundos sem ter noção do perigo que corremos. Perdemos tanto tempo seguindo mapas ou indicações de outras pessoas sobre onde poderíamos encontrar a tal felicidade sem sucesso, quando tudo que tínhamos a fazer era ouvir a voz de nossos corações, mas infelizmente, nem sempre a coisa funciona assim. Alguns têm sorte de acordar a tempo para a vida e vivê-la em toda a sua plenitude, outros se vão, sem viver.

2005. Em viagem de negócios, lá estava ele, hospedado no "Le Montmartre Hotel", quarto 36, no 3º andar do estonteante edifício de estilo romanesco, todo pintado de branco, o que lhe conferia uma aura de paz e tranqüilidade. A única coisa que o estava incomodando era que seu Blackberry, como sempre, não parava de tocar. A todo instante ele tinha que checar sua caixa de e-mails para ficar ciente das possíveis alterações quanto à reunião que iria acontecer naquele dia. O sol tinha acabado de acordar de seu descanso noturno e Gabriel também. A vida francesa o cativou logo pela manhã quando um cheiro forte, agradável e envolvente o acordou. Era o aroma das baguetes frescas que tinham acabado de sair de uma fornada na padaria do outro lado da rua. O quarto que estava meio sem vida, desde que ele chegou na noite anterior, de repente ressuscitou com o cheiro que preencheu o ambiente de canto a canto. O azul claro das paredes, com as janelas abertas, pareciam se fundir com o azul do céu limpo e claro que havia lá fora. Tudo, sem exceção, lhe dava uma sensação de que nada poderia ser mais harmonioso, mas o alerta de seu Blackberry soou de novo indicando nova mensagem de texto. Ele resolveu ler depois.

Uma simples batida na porta de seu quarto sem que ele esperasse, e seu dia começou perfeito.

-"Le petit dejeneur est servi".

A voz era de uma jovem, que soou um pouco estranha. Talvez por estar um pouco incomodada pelo fato de estar trabalhando tão cedo, quando o sol mostrava seus primeiros raios na capital francesa. Gabriel percebeu em sua voz um certo sotaque brasileiro e curioso para ver quem era, ele foi atender. Quando abriu a porta a jovem já se dirigia a outro quarto com o carrinho e ele até achou que ela caminhava de uma maneira engraçada. Enquanto ela se afastava o salto de seu sapato fazia um leve barulho no assoalho de madeira ao longo corredor. Quando ele olhou para baixo, bem em frente aos seus pés havia uma magnífica bandeja de prata, repleta de delicias francesas esperava que fosse apanhada e levada para dentro.

Por incrível que lhe parecesse, de cada pedaço de seu café da manhã subia uma leve fumaça que pareceu enfeitiça-lo pelo aroma maravilhoso. Encantado, Gabriel sonhava acordado. Ele via em sua mente as cenas de filmes antigos sobre Paris, como o La Vie Parisiene que assistiu quando ainda era muito jovem. Croissants quentinhos o estavam chamando pelo nome para serem comidos. O café então, este preenchia o quarto, de canto a canto com seu aroma incrivelmente delicioso. As baguetes que o acordaram logo cedo, estavam bem em sua frente. Quase que implorando a ele para serem mordidas. Depois de consumir quase tudo que lhe foi servido, ele finalmente leu a mensagem recebida e ficou sabendo que sua reunião tinha mudado de horário. Ela seria realizada no período da tarde e sendo assim, depois de longos anos sem alguns momentos de folga, ele resolveu que iria sair para uma caminhada e encarar o dia maravilhoso de sol que fazia em Paris.

O hotel onde ele estava parecia estar aninhado aos pés do Monmartre. Ainda era muito cedo quando ele o deixou. Mal saiu para rua e já pode ouvir as pessoas caminhando e conversando na praça quase em frente ao edifício. De repente, acomodados em círculos, como numa galeria a céu aberto, os lendários artistas de Montmartre estavam lá, bem na sua frente. Todos eles pareciam prontos para vender com alguma peça de arte um pedaço de suas almas, pois tudo que faziam tinha sempre partes delas. Eram tantas e tão belas peças em meio a tantas artes diferentes, que ele ficou extasiado diante de tantas cores mixadas em telas de todos os tamanhos e formas. Atônito com tanta beleza, ele observava tudo com extrema atenção. Era quase impossível ver como as mãos ágeis daqueles artistas desenhavam círculos e linhas perfeitas. Eles conseguiam dar vida e forma a coisas que para Gabriel não tinham nada de interessante. Davam a tudo em que tocavam com sua arte, um significado em meio a cores e formas. Gabriel percebeu que cada pessoa que passava em frente às obras de arte ficava absorta em pensamentos. Era como se a arte daqueles artistas os levassem a uma outra dimensão, onde tudo que estivesse à sua volta além daqueles objetos não significasse mais nada. Fascinado ele se lembrava de que nunca em sua vida tinha sequer parado para admirar a beleza de uma flor.

Os artistas pareciam estar todos em outro mundo. Tudo que lhes importava era criar e dar formas à sua imaginação. Envolvendo o ambiente mágico daquela galeria a céu aberto, havia uma música que parecia tocar a alma de todos que estavam lá com seus acordes. Ele ficou um longo tempo admirando apaixonado aqueles homens e mulheres que faziam de sua própria vida, uma obra de arte. Quanta coisa linda ele deixou de ver e conhecer em sua vida tão corrida e sem tempo para nada, muito menos para sí mesmo e para aqueles que o amavam. Um tempo depois, quando resolveu sair da praça, um outro estágio daquele mundo mágico e encantador surgiu bem à sua frente. Uma velha senhora estava em pé no meio de uma multidão que a rodeava. Ela tocava algo que parecia ser um antigo instrumento tradicional da musica francesa. Desconhecido para Gabriel, ele era algo que lembrava muito uma sanfona nordestina, mas com formas muito diferentes. Ela tocava sem parar fazendo soar em cada canto do lugar, uma estranha, mas encantadora canção que arrebatava a atenção e o coração de todos que por lá passavam.

Quando chegou a Paris na noite anterior, ele estava sem a menor inspiração. Tudo que ele sabia é que estava lá, como esteve em muitos outros países apenas por obrigação. Tinha um dever a cumprir e nada mais. O que ele queria, era acabar logo com o que tinha ido fazer e poder voltar para o Rio de Janeiro, onde seu trabalho o esperava e havia muito a ser feito. Ele não parava nunca. Já havia morado em São Paulo e em tantas outras capitais do Brasil. Viver em cidades grandes e barulhentas já era rotina em sua vida. Paz, sossego e inspiração, eram coisas com que ele nem se preocupava, ou pelo menos achava que não. Gabriel não tinha ido procurar inspiração em Paris, mas foi lá que aos poucos, sua vida mudou e tudo aconteceu de uma forma que ele nunca poderia imaginar. Mais à frente, sem estar preparado para tal, outra surpresa surgiu em seu caminho. Depois de andar alguns quarteirões apreciando os cafés, padarias e bares locais, com pessoas elegantemente sentadas em cadeiras nas calçadas, conversando e saboreando as delicias locais, lá estava ela: Dominando tudo à sua volta com sua glória, atraindo multidões com sua magnificência. De um branco celestial, com seus mínimos detalhes tão perfeitos, que nem pareciam ser reais. Com sua estrutura prevalecendo sobre qualquer outra nas proximidades, causando espanto e admiração por sua grandeza e beleza. "La Basilique du Sacre-Coeur de Monmartre". Uma das mais magníficas visões de arte arquitetônica de todos os tempos.

Ao aproximar-se dela, Gabriel se emocionou ao ler as simples palavras que estavam gravadas numa pedra e seu coração se encheu de paz, de fé e da crença de que Deus existe e está em todo lugar. Fazia muito tempo que ele não de lembrava de nosso criador. Era católico, mas não frequentava igrejas. Para ele, santuários como aquele não passavam de construções monumentais, mas as frases lá escritas que eram uma mensagem de boas vindas a todos que por ela passassem, tocaram profundamente o seu coração. Por várias vezes ele as leu antes de resolver seguir caminho. Gravadas na pedra elas diziam:

Seja bem vindo!

Peregrinos, visitantes ou apenas caminhantes;

Aqui, Deus lhe dá as boas vindas, e sentido à sua vida!

Aqui, Deus espera por você, para lhe oferecer todo seu amor!

Com lágrimas nos olhos, ainda muito emocionado, sentindo no peito uma paz que nunca sentiu, em dado momento sua atenção foi desviada para uma velha senhora que estava sentada nas escadarias de mármore perolado da igreja. Ela tinha as mãos mais velhas que ele já tinha visto em toda a sua vida, mas elas se moviam com uma agilidade e rapidez incrível, tricotando um casaco para o pequeno príncipe que estava sentado ao seu lado. Numa questão de segundos, Gabriel viu unir-se diante dele duas gerações tão diferentes. O pequeno anjo que estava com a cabeça encostada no ombro da velha mulher, tinha cabelos loiros e cacheados, que o faziam lembrar um querubim. Foi mais um momento da mais pura emoção. Ele pode ler nos olhos do garotinho que ele sabia que ainda havia muito trabalho a ser feito, mas estava lá, sorrindo de vez em quando enquanto deslizava seus dedinhos sobre a parte do casaco que já estava feita. Seus olhos brilhavam de emoção e excitação. Certamente ele estava ansioso pelo resultado final.

Gabriel pode enxergar no olhar e no sorriso do garotinho a alegria e felicidade dele, quando seu casaco estivesse pronto e pudesse ser vestido. Aquela foi mais uma cena que o tocou profundamente como ele nunca achou que poderia acontecer. Gabriel se esqueceu do motivo pelo qual tinha ido a Paris. Aos poucos sem mesmo saber que estava acontecendo, ele estava re-aprendendo a viver, a dar valor às pequenas grandes coisas da vida. Envolto pela magia da cidade luz, sem acreditar que estava tendo aqueles pensamentos, ele sonhava em um dia poder mudar-se para lá e viver uma outra vida. A vida simples e absolutamente mágica que ele havia descoberto naquelas poucas horas, caminhando pelo bairro de Montmartre desde que saiu do hotel após o seu café da manhã.

Seu Blackberry tocou mais uma vez. Contudo, outra vez o cheiro de baguetes frescas vindo agora de outra padaria nas redondezas foi mais forte e desviou sua atenção do celular. Ele não atendeu à ligação. Gabriel sacudiu a cabeça e riu de si mesmo. Ele não estava acreditando no que estava acontecendo com ele naquele lugar. Como poderia ele, um homem de negócios, que não tinha nem tempo para respirar, sonhar em se libertar de todas as suas responsabilidades, de todos os seus compromissos inadiáveis e suas obrigações forçadas pelas engrenagens desumanas do mundo dos negócios? Desde que se entendeu por gente e começou a trabalhar, sua vida nunca mais foi dele. Sempre viveu uma vida inteira dedicada a fazer o que os outros queriam que ele fizesse. Afinal, no mundo dos negócios, os anseios e desejos do ser humano não importam. Nele, cada membro da dita sociedade dos homens é um objeto que após ter sido usado até o desgaste total, é substituído por outro que por sua vez também é considerado de utilidade para o sistema enquanto estiver produzindo. Quando não tiver mais condições físicas ou psicológicas para continuar, é deixado de lado, sem ao menos receber uma explicação justa e honesta do porque. Depois de ter pego um taxi em Montmartre indo em direção ao Champ de Mars, passando pelos Champs Elyseés, ao virar uma esquina, perto da Place du Trocadéro, ele pediu ao motorista para parar.

Caminhando devagar, conhecendo e admirando tudo à sua volta, ao virar uma esquina, os murmúrios de uma multidão ao longe o fez seguir em sua direção. Mesmo receoso sobre o que iria encontrar, sua curiosidade era muito forte para que ele deixasse de ir até onde estavam aquelas pessoas que faziam todo aquele barulho. Ao virar outra esquina, sua atenção foi atraída para o seu lado esquerdo e ao se virar, ele não pode acreditar no que estava vendo. No meio de uma verdadeira massa de pessoas, dedos apontavam para cima, flashes de câmeras eram disparados, um atrás do outro, vozes de homens, mulheres e crianças em todas as línguas, se misturavam no ar pronunciando palavras de exclamação e admiração que eram ouvidas por toda parte. Era como se uma grande celebridade estivesse diante deles. Uma verdadeira multidão de pessoas estava olhando admirada para aquele símbolo, para aquela estrela sem igual.

Gabriel ficou perplexo. Trezentos e vinte e quatro metros de ferro envelhecido, ainda tão longe dele, mas aos olhos de sua mente tão palpáveis. Colossal, inspiradora, esplêndida, um dos pouquíssimos monumentos reconhecidos por todos ao redor do mundo. Mudo, sem pronunciar uma única palavra, ele não pode deixar de compará-la com uma rainha que estava em pé naquele lugar, olhando lá de cima seus súditos cá embaixo. Vendo a Torre Eiffel predominando os Champs de Mars, com toda a sua magnificência e grandeza, convivendo lado a lado até mesmo com uma pequena flor, que à sua maneira, era tão ou mais bela do que a própria torre, fez com que Gabriel tomasse uma decisão que mudaria sua vida para sempre.

Naquela tarde ele não compareceu à reunião de negócios que tinham marcado para ele no Hotel de Ville em Marais. Os executivos que o aguardaram por mais de 2 horas, nervosos e impacientes, desistiram de esperar e indignados com a ausência de Gabriel, foram embora para seus hotéis, prometendo que aquilo não iria ficar assim.

Naquela tarde seu Blackberry bateu o record de avisos de mensagens e toques de ligações. Gabriel não atendeu.

Enquanto aqueles homens de negócios, tanto os clientes de sua empresa, quanto seus colegas de trabalho tinham fortes dores de cabeça, até azia e mal estar pelo que tinha acontecido, Gabriel percorria todos os lugares da cidade e nem sentiu o tempo passar. Partindo de onde estava, aos pés da Torre Eiffel, com a ajuda de um taxista cheio de gentilezas e atenções, ele rumou para St Germain, conheceu o Quartier Latin, onde era difícil encontrar alguém que falasse francês. Conheceu o Paláis de Justice e depois passeou de Bateau Mouche pelo rio Sena. Mais no final da tarde, ainda com um céu azul anil, sentindo-se mais leve do que nunca, ele foi para o Marais e de lá seguiu rumo a St Martin onde jantou às margens do canal. Já era tarde da noite quando ele voltou ao Montmartre Hotel e mesmo àquelas horas, seu Blackberry não parava de tocar.

Após uma agradável noite de sono, como ha muito ele não tinha, mais uma vez ele acordou pela manhã com o cheiro das baguetes frescas da padaria do outro lado da rua. Gabriel levantou-se, tomou um banho demorado ouvindo musicas de Piaf que sempre curtiu e depois tomou seu café da manhã com todo o prazer, degustando cada pedacinho de seu croissant fresquinho, coisa que antes ele não fazia porque não tinha tempo para isto. Sua vida tinha mudado. Ele já não era o mesmo desde sua primeira manhã em Paris.

Seu Blackberry tocou. Na telinha uma mensagem de texto apareceu. Reunião importante. Rio de Janeiro. Amanhã. 19 horas. Hotel Copacabana Pálace. Gabriel leu a mensagem, olhou para cidade lá fora, olhou de novo para o seu Blackberry, levantou-se e foi até a porta do banheiro, deu uma parada pensativo, mas logo entrou nele por uns instantes. Depois de dar descarga no vaso sanitário ele saiu voltando para o quarto onde arrumou as malas para partir.

Galeão, Rio de Janeiro. Ao se aproximar do aeroporto, da janela do avião, a imagem do Cristo Redentor, com os braços abertos pareciam ser um convite para um abraço carinhoso. Pouco depois o vôo vindo da França havia pousado e os passageiros começaram a desembarcar. Um grupo de executivos o aguardava na saída dos passageiros com ansiedade e nervosismo. Gabriel era o homem chave para o fechamento de um grande contrato naquele dia, mas o que ele não sabia era que o grupo empresarial para quem trabalhava tinha um plano para demiti-lo logo após efetivada a transação para que seu cargo fosse ocupado por outra pessoa, mais jovem, inexperiente, mas amigo do filho do Diretor Presidente. Após a assinatura do tão desejado contrato, que segundo o cliente, só seria assinado com a presença de Gabriel, ele receberia o famoso bilhete azul e sua carreira no mundo dos negócios, aos 45 anos, teria um triste fim.

Muitas pessoas saiam pelo setor de desembarque e o grupo de executivos estava cada vez mais ansioso pela saída de Gabriel. Eles esperavam que ele já estivesse pronto para a reunião que seria dentro de meia hora. De repente um sorriso se abriu nos lábios de todos que o esperavam. Mal ele se aproximou do grupo e dois homens o agarraram puxando-o pelo braço para que fossem rapidamente para o carro que já os esperava com o motor ligado. Num movimento inesperado, Gabriel se livrou de todos que atônitos o olhavam sem saber o que pensar, nem o que dizer. Um deles perguntou se ele estava ficando louco, mas tudo que ele fez foi sorrir. De repente ele começou a rir com vontade e o som de suas gargalhadas contagiou a todas as pessoas que estavam naquela ala do aeroporto que começaram a rir junto com ele, mesmo sem saber porque ele estava rindo. Não demorou muito e uma multidão não parava mais de rir. Para desespero daqueles que esperavam por Gabriel, o setor de desembarque explodiu em gargalhadas. Em dado momento, ele parou de rir e quando ele o fez, todos pararam também.

Mais sério do que nunca, lentamente ele se dirigiu para onde estava reunido o grupo de executivos. Ao chegar bem perto deles, ele parou. Seu semblante se transformou. Com um sorriso largo, encarando de frente, a todos eles, Gabriel desfez o nó da gravata, desabotoou as mangas e o colarinho da camisa, e após dar um suspiro profundo em sinal de alívio, disse a eles, com voz firme, em claro e bom tom, que louco ele já tinha sido antes, mas daquele momento em diante, não mais. Sem dizer mais uma única palavra, ele virou-se e foi embora, deixando para trás, um grupo indignado de homens bem vestidos, engravatados e prontos para uma reunião de negócios, onde seriam usados como tantos outros sempre o foram, até enquanto servissem aos interesses da empresa em que trabalhavam, numa cadeia sem fim.

Paris. "Le Montmartre Hotel", quarto 36, no 3º andar do estonteante edifício de estilo romanesco. Na noite do dia em que Gabriel partiu de volta para o Brasil, a arrumadeira que também fazia a faxina no hotel terminou de arrumar a cama e preparar o quarto para receber um novo hóspede na manhã do dia seguinte. Como de costume, ela entrou no banheiro que seria o ultimo lugar a ser limpo. Ao levantar a tampa do vaso sanitário para fazer a higienização, ela se espantou com o que viu. Dentro dele, havia um Blackberry, e ao que tudo indicava, alguém o tinha jogado lá propositalmente naquele mesmo dia. A jovem pegou uma luva, colocou em suas mãos e pegou o aparelho que já não valia mais nada. Olhando-o de perto, ela deu um sorriso e balançou a cabeça, como se estivesse se questionando, quem em sã consciência teria feito aquilo. Depois caminhou até onde estava o cesto de lixo e o atirou dentro dele, seguindo rumo a outro quarto do hotel para continuar seu trabalho.

Rio de Janeiro, Corcovado. Gabriel de bermuda e camiseta regata, usando sandálias Havaianas estava aos pés do Cristo Redentor. Tantas outras vezes ele esteve lá com clientes sem dar à estátua a devida atenção. De repente, ele sentiu uma vontade irresistível de abrir seus braços, igual ao Cristo e sem pensar no que os outros iriam dizer, ele o fez e se sentiu muito bem. Ele estava feliz. Livre para ser ele mesmo, livre para fazer o que bem entendesse. Livre para viver a sua própria vida, sem ter que representar sentimentos que não sentia, sem ter que fazer só o que os outros queriam ou ordenavam que ele fizesse. Naquele instante, carregado de energias positivas recebidas no alto do Corcovado, ele se lembrou das frases gravadas na pedra na Basílica do Sagrado Coração de Montmartre.

Mais uma vez seus olhos se encheram de lágrimas e seu peito de uma profunda emoção. Finalmente, depois de quase uma vida inteira, ele re-aprendeu a viver. Gabriel compreendeu que não importa qual seja a nossa religião, ou status social em que vivemos, é na fé, na crença em Deus e na beleza da vida, que encontramos a nossa liberdade e o verdadeiro e único sentido de nossas vidas.

Autor: José Araújo

domingo, 21 de junho de 2009

ANIMAIS RACIONAIS



Os primeiros sinais de claridade começavam a aparecer. O sol já atravessava timidamente com seus raios o denso nevoeiro no bosque de Eucaliptos que ficava próximo à nossa casa. Um novo dia de um mês de um setembro qualquer, que ficou perdido no tempo há muitos anos atrás estava nascendo. Enquanto a cerração ainda cobria toda a várzea onde nós morávamos, mal dava para se enxergar pouco à frente de nós enquanto caminhávamos em direção à margem do rio Tietê. Tínhamos que atravessar de canoa para o outro lado, com o auxílio de um canoeira, coisa que fazíamos todos os dias, sem nunca falhar. Aquela era a minha rotina diária por todo o período escolar.

Subi na canoa e quando saímos de nosso lado da margem e chegamos ao meio do rio, não se via terra para qualquer lado que se olhasse, somente a densa cerração causada pelas matas e pelas águas do rio e das lagoas adjacentes, porém nosso canoeiro, seu Chico, experiente como era, podia atravessar o Tiete em qualquer tempo e como ele sempre dizia, até de olhos fechados e assim, desde que eu me entendi por gente, tinha plena confiança naquele mineiro de Bom Despacho, que nos tratava a com muito respeito e cuidado.

Eu entrava na escola às sete horas e para chegar lá havia uma longa caminhada que durava mais de uma hora, andando pelo meio do mato, muitas vezes enxergando apenas onde pisava, beirando por vezes a rodovia, outras a estrada de ferro quando chovia demais e passando por entre industrias que começavam a se instalar na cidade de Guarulhos, beirando a Rodovia Presidente Dutra, que na época tinha apenas duas pistas, ladeadas por lagoas e brejos traiçoeiros que sempre tiravam as vidas daqueles que sofriam acidentes de transito na rodovia e tinham seus veículos atirados em suas águas e lamas, que sem dó nem piedade os sugavam para suas profundezas para nunca mais voltar.

No começo, minha mãe me levava desde a travessia do rio e da rodovia, até a porta da escola e depois ia me buscar, mas isto não durou muito tempo. E eu tinha que ir e vir sozinho, só tendo a ajuda de um adulto nas travessias do rio.

Eu tinha medo no começo, mas com o passar do tempo fui me acostumando e em determinado momento, já não representava mais nenhum desafio ou risco para mim, pelo menos era o que eu pensava.

Naquela manhã de setembro, quando sai de casa rumo à escola, nem de longe poderia imaginar que a rotina diária seria rompida com um acontecimento que marcou minha infância e que com certeza irei relembrar dos fatos que se seguiram, até o fim de meus dias.

Havia uma fábrica de tintas pela qual eu passava e geralmente meu trajeto era por trás dela, beirando os muros num estreito caminho que separava a construção do mato cerrado e naquele dia, de longe ouvi gritos de homens dizendo algo que eu não conseguia entender.

Quando fui me aproximando, vi que havia vários deles em cima do muro da fábrica que por sinal era bem alto e todos estavam atirando pedras em alguma coisa bem no lugar em que eu teria que passar.

Aproximei-me devagar e os homens perceberam minha presença, mas mesmo assim continuavam a jogar pedras e foi então que eu vi, lá bem no meio do caminho, todo encolhido e ferido, um pequeno ratinho, indefeso, à mercê da maldade daqueles homens que pareciam ter prazer no que estavam fazendo. Era como se estivessem disputando para ver quem mataria primeiro o pobre bichinho.

Naquele instante, percebendo o fim iminente do ratinho, uma coragem imensa me invadiu. A despeito do que poderia acontecer comigo com eles jogando pedras lá de cima, corri em direção ao pobre animalzinho, enquanto eles gritavam, para que eu saísse da frente, por que se não o fizesse, eles iria atirar pedras em mim também.

Não senti medo de nada. Nunca tive tanta coragem em minha vida. A única coisa que me importava naquele instante era salvar a vida do ratinho. Eu precisava salvar o pequenino e levá-lo para bem longe do alcance daqueles desalmados.

Sob gritos de ameaças, de ser xingado com muitos palavrões e até mesmo tendo recebido algumas pedradas, peguei o pobrezinho e sai correndo pelo meio do mato, protegendo o pequeno corpinho entre minhas mãos e enquanto corria, só pensava no bem estar do ratinho. Lembro de não ter sequer olhado para trás. Eu corria com ele em minhas mãos desesperadamente, sem mesmo saber exatamente para onde estava correndo, pois nunca havia me atrevido a entrar naquele matagal.

Após muito correr em voltas, acabei saindo de novo em meu caminho, bem longe daquele muro. Foi ai que parei para ver o que poderia fazer por ele e logo percebi que haviam acertado uma pedra na cabeça do ratinho que o havia atordoado, por isto estava lá, parado e indefeso, sob a mira e a ira daquelas pessoas sem coração.

Os córregos eram comuns pelo caminho e mesmo fontes de águas cristalinas podiam ser encontradas às margens da estrada de ferro e foi numa delas que lavei a cabecinha dele. Enrolei-o em meu lenço e segui meu caminho rumo à escola. Enquanto caminhava eu ia imaginando em minha inocência, onde eu poderia esconde-lo até o final das aulas, pois tinha intenção de leva-lo para casa, pois no meio de tantos bichos que criávamos lá, de tantas espécies diferentes, um a mais, não poderia fazer diferença nenhuma.

Não conseguindo encontrar nada para poder protege-lo, muito menos um lugar seguro para colocá-lo, não tive opção a não ser ficar ali, na frente da escola com o ratinho dentro da minha mochila, rezando para que alguma solução surgisse por milagre. Foi então que vi um outro garoto mais velho que morava numa chácara, próximo à escola e então resolvi pedir a ele que guardasse o ratinho para mim, até que eu pudesse pegá-lo ao final das aulas.

Na minha ingenuidade de criança, pedi a ele que o fizesse e mais do que de imediato ele aceitou. Havia em seu rosto um sorriso que no momento não compreendi bem, mas não tive tempo nem malicia para levar aquilo em consideração.

Quando deu o sinal de saída da escola eu não via a hora de pegar o ratinho e levá-lo embora comigo. Eu queria cuidar dele, dar comida, tratar de seus ferimentos. Queria poder arrumar um lugarzinho em nosso quintal onde ele pudesse viver em paz. Qual não foi minha surpresa ao sair do portão da escola para a rua, quando vi uma roda de meninos grandes gritando agitados, “Mata, mata, mata!”...

Aquela cena com os meninos, mesmo de longe, instintivamente me fez lembrar dos homens lá naquele muro e imediatamente soube o que estava acontecendo. Era o ratinho que eles estavam matando!

Os meninos jogaram pedras no bichinho até estraçalhar seu corpinho frágil e indefeso. Não houve nada que eu pudesse fazer, a não ser chorar. Chorar a dor de ter confiado naquele menino a quem eu entreguei em confiança o pobre ratinho. Eu tinha acreditado plenamente em sua palavra.

Tudo que aconteceu naquele dia ficou marcado em minha mente desde então. Mesmo após tantos e tantos anos, ainda hoje, eu me pego a lembrar dos homens no muro, do ratinho e dos outros meninos que o mataram por puro prazer e dos meus sentimentos de revolta e repugnância pelas atitudes daquelas pessoas, tanto adultos, quanto crianças, que significaram tanto em minha vida.

Na vida, o ser humano age muitas vezes irracionalmente, de uma forma que nem mesmo os animais o fazem usando o instinto. Mesmo que a humanidade os chamem de animais irracionais, talvez agindo por instinto, matando apenas para se defender ou para se alimentar para sobreviver, eles sejam muito mais racionais que muitos seres que se dizem “humanos”.

O tempo passou, eu cresci, amadureci, os tempos são outros, mas o homem parece não ter evoluído. A cada dia ele parece regredir ainda mais e tenho visto tantos e tantos casos de seres humanos matando animais, até mesmo os mais inofensivos como pássaros, gatos, cachorros e o corte indiscriminado de imensas quantidades de árvores, apenas pelo prazer de matar, de tirar uma vida, não só por esporte ou dinheiro, o que já é inadmissível, mas por pura maldade, pelo simples prazer de destruir o maior bem que recebemos de Deus.

Viver e deixar viver, respeitando a vida de todos os seres, sejam humanos ou não, protegendo a fauna e a flora de nosso planeta contra nós mesmos, é a única maneira de garantirmos nossa existência futura na face da Terra.

O ratinho perdeu sua vida, partiu para sempre, mas deixou marcas profundas em minha personalidade, em minha vida. A dor da perda e a revolta pelo que meus colegas de escola fizeram com o pobre animalzinho serviram para mim com uma lição de vida.

Aprendi a ser cauteloso mesmo com os da minha própria espécie, pois por trás de um par de lindos olhos, ou de um lindo sorriso, pode haver um animal perigoso, um ser realmente irracional.

Autor: José Araújo