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domingo, 31 de agosto de 2008

CABIDE DOS SONHOS...




Já passava das nove horas da manhã quando ele chegou para leva-lo para casa, mas André já estava pronto há muito tempo.
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Ele tomou uma ducha com ajuda dos enfermeiros, com muita dificuldade, pois não era uma tarefa muito fácil, engessado da cintura até o pescoço.
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De qualquer forma, ele estava limpo, já havia trocado de roupas com a ajuda dos enfermeiros e extremamente ansioso para voltar para casa, quatro meses depois do acidente com seu carro que o deixou inválido, sem poder andar, preso a uma cadeira de rodas e pior, sem esperanças de voltar a andar novamente.
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Na verdade naquele momento, não importava se ele estava voltando para casa de cadeira de rodas, nem mesmo se suas pernas não mais funcionavam e tudo que ele sabia, é que iria voltar para sua casa e seu lar faria tudo parecer melhor, afinal, como disse Alice na estória do Mágico de Oz:
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“Oh, Tia Ema, não há lugar nenhum como nossa casa!”
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Esta sempre foi sua estória favorita, quando era pequeno nunca se cansava de ouvir sua mãe ler para ele e quando cresceu, não compreendia o porquê desta paixão pelo “Mágico de Oz”, mas nunca deixou de gostar da estória que lhe fazia muito bem.
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Os enfermeiros o colocaram no carro de seu pai e quando ele se senta no banco do motorista, André o olha fixamente e pensa o quanto seu pai parece com o “Espantalho” e seu pai, exatamente como o personagem da estória do Mágico de Oz era feito de muitas partes, de muitas coisas, como força, coragem, companheirismo, compreensão e amor, especialmente de amor.
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Ele nunca foi um homem elegante, era magro, com ombros caídos e com sujeira debaixo das unhas, pois sempre foi um mecânico, nunca estudou na vida, era um verdadeiro trabalhador, pelos padrões da sociedade, ele não era um homem educado, mas André pensava diferente, pois seu pai não era de falar muito, mas o pouco que dizia poderia ser escrito, pois ele sempre estava certo e André nunca precisou escrever, pois sempre soube que nunca iria esquecer o que ele dizia.
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Era muito difícil ficar sentado num banco de carro, quase que imóvel por causa do gesso que o envolvia, mas ele foi obrigado e quando fecharam a porta do carro ele ficou olhando pela janela, com sua face tensa, cansada, parecendo muito mais velho do que os 16 anos que ele tinha.
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Ele nem mesmo se lembra do mundo dos 16 anos, como se aquele mundo nunca tivesse existido e então ele pensa sobre o que Dorothy quis dizer, quando ela falou:
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“Oh, Toto, eu não penso que estejamos mais em Kansas.”
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Para ele, isto sempre foi e agora mais do que nunca, um assunto com significado muito maior do que uma simples situação geográfica.
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Assim que o carro sai do estacionamento para as ruas, ele agarra firmemente o assento de seu banco com as duas mãos e quando se aproximam do farol na próxima esquina, ele fica em alerta extremo, sua face atenta e tensa e seus olhos se movem rapidamente nas duas direções e quando vê que seu pai não vai parar no farol ele grita em voz alta:
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Pare! Não viu que o farol está vermelho? Você quer nos matar?
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Mas, logo em seguida, com voz mais branda ele diz:
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Você não sabe o que tem sido este tempo que fiquei no hospital, você nunca esteve em meu lugar!
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Seu pai olha para ele e não diz nada, mas como o Espantalho e Dorothy na estória, eles seguem em frente e ele ainda não relaxou as mãos e ainda se segura firmemente no assento do banco.
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Igual à estrada de tijolos amarelos da estória do Mágico de Oz as ruas pareciam não ter fim, o carro seguia em frente rumo ao seu destino, passando por parques e edifícios altos que lhe cobriam a visão e o impediam de enxergar sua casa, a “Cidade das esmeraldas”.
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Olhando pela janela, toca a pulseira em seu braço, um presente dado por seus avós e que ele não tirava, nem mesmo nas piores circunstâncias e como em todas as coisas, o bracelete tinha dois lados, o de cima, onde todo mundo podia ler, estava escrito seu nome e no de baixo, que toca sua pele e seu coração, estava escrita a palavra esperança, uma palavra pequena, mas que tem um significado enorme na vida e agora era do que ele mais sentia falta.
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André tateia sua pulseira, passa os dedos sobre a palavra gravada, vagamente ele se lembra como era ter esperanças de um dia se tornar um grande cantor de rock, viajando o mundo inteiro em suas turnês, dançando e pulando ao som da musica que sempre lhe elevou o espírito, ele nem mesmo tem certeza, de que se lembra como era ter esperança, uma tremenda força propulsora que impulsiona a vida, pois agora ela se foi e ele nem mesmo sabe onde foi que a perdeu e muito menos como acha-la de novo.
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Cabeça encostada no vidro do carro, olhos fechados, ele assiste mentalmente as imagens de como sonhava em ganhar a corrida de São Silvestre e uma lágrima furtiva, teima e rolar por sua face e atrás dela, mais outra e mais outra e então ele deixa o pranto cair livremente e enquanto chora, ele se vê andando de bicicleta, praticando skate no parque, mas em meio a tudo isto, vê uma cena magnífica, muito além da imaginação, sob um céu azul, com um sol absolutamente lindo, refletidos nas águas do lago do Parque Ibirapuera, cercado pelas arvores, ele se vê nitidamente, andando e dentro de seu coração ele sente uma paz que jamais havia conhecido na vida.
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Mas ao abrir os olhos, ele relembra e lembrando, ele sabe que estava sonhando acordado e tateia instintivamente sua pulseira, passando os dedos sobre a palavra esperança gravados nela, o medo é desesperador, um medo insuportável de não voltar a conhecer o significado desta palavra.
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Ele relaxa o corpo e afunda um pouco no assento e mais uma vez as lágrimas rolam pela sua face e ele diz:
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Pai, os médicos dizem que nunca mais vou poder andar, eles são os melhores especialistas, mas dizem que nunca mais vou andar!
Foi então que seu pai parou o carro, o homem que havia estado com ele por todos os caminhos e estradas de sua vida, igual ao Espantalho fez com a Dorothy na jornada rumo ao encontro do Mágico de Oz e ele fala:
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Filho, eles podem colocar pinos e rodelas de metal em suas costas e por você de pé novamente, mas de uma olhada à sua volta meu filho, nenhum daqueles médicos tem o poder de fazer uma lâmina de uma folha de capim.
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Foi então que André percebeu, que seu pai havia lhe dado a maior e mais valiosa lição de toda sua vida, de toda a sua jornada:
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De que ele nunca esteve, nem nunca estaria só, pois há sempre na vida um “Mágico”, há sempre Deus que cuida de todos nós e com Ele, sempre haverá esperança.
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Então ele firma seu corpo, relaxa e solta o assento que segurava com força, olha para fora da janela e sorri, pois no fundo de seu coração, ele sabe que ama seu pai, mais do nunca na vida, pois ele lhe devolveu a esperança perdida e com ela, a certeza de que a esperança é o cabide onde penduramos nossos sonhos, até que um dia eles sejam realizados.
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Autor: José Araújo

domingo, 10 de agosto de 2008

UMA JANELA PARA A ALMA...


Há muito tempo atrás, nascia bem no coração da capital paulista, mais precisamente no bairro do Brás, um menininho, que logo ao sair da maternidade foi levado para morar num lugar chamado Várzea do Palácio, onde hoje é o Parque Ecológico do Tietê, onde morava a família. Seus pais viviam e trabalhavam, numa Olaria, uma antiga fábrica de tijolos de barro, onde não havia luz elétrica, nem água encanada e vida de todos que lá viviam era muito rústica em todos os sentidos. Quase toda a alimentação que eles consumiam, era produzida no local, em hortas imensas onde eram plantados vários tipos de vegetais e havia criação de diversas espécies de aves e animais, para garantir o consumo de carnes para todos e as vacas que produziam leite suficiente para toda a comunidade. Havia muitos patos, gansos, galinhas, perus, cavalos, vacas, enfim eram muitos os animais que o cercavam e eram eles seus únicos divertimentos, sua única distração. Assim o tempo foi passando e aquele bebê foi crescendo, se tornando um garotinho e sempre rodeado pelos animais que aprendeu a amar, mas não recebia atenção dos pais como deveria. Sua mãe sempre muito atarefada, além de ajudar a amassar o barro com os pés o dia todo, ainda tinha que cuidar da casa, do marido, mal sentava ou deitava em algum lugar e já adormecia instantaneamente, pois sua vida era só de muito trabalho, muitos sacrifícios, nunca havia um momento de pausa, para descanso ou lazer.

Seu pai levantava às 4:00h da manhã para iniciar sua jornada no trabalho, precisava acender ou limpar a fornalha da velha Olaria para nova queima de tijolos. Ele nunca parava nem para almoçar, comia executando tarefas e neste ritmo, ia até às 10:00h da noite, sem parar e jamais tinha tempo para brincar, ou conversar com o garotinho, que já tinha então quatro anos de idade, aliás, isto nem lhe passava pela cabeça, pois ele achava que tinha outras coisas mais importantes, com o que se preocupar. A vida dura que eles levavam, gerava conflitos entre o casal e o garotinho ouvia assustado a seus pais falando em voz alta, ou gritando. Sua reação imediata quando isto acontecia, era esconder-se onde ele pudesse, até que tudo se acalmasse, pois tinha muito medo de tudo aquilo. Não podia compreender o porque das discussões que com o tempo se transformaram de agressões verbais para agressões físicas entre eles. Ao longo do tempo, seu pai que jamais havia falado com ele, nunca havia dito qualquer palavra que demonstrasse que gostava dele de alguma forma, começou a bater nele para repreende-lo, por quaisquer motivos e na maioria das vezes, ele nem mesmo sabia porque estava apanhando. As surras foram aumentando e se tornaram espancamentos, a violência era tanta, que o garotinho tremia da cabeça aos pés, quando percebia que seu pai estava chagando em casa. Seu terror crescia dia a dia e as violências eram cada vez mais freqüentes, mas o que mais doía nele, mais do que qualquer pancada, é que sua mãe não fazia nada para impedir seu pai de espanca-lo e isto, ele não conseguia compreender, ele tentava, mas era em vão e ai, sua dor e tristeza, pareciam que nunca iam ter fim.

Aos cinco anos de idade, o garotinho ganhou um gatinho, foi um presente de uma tia, que morava muito longe e trouxe o bichinho em uma de suas visitas à família. Logo na chagada, quando sua tia lhe entregou o bichinho, para admiração de todos, houve uma aceitação imediata e parecia que o gatinho procurava proteção nos braços do garotinho, parecia que ele sabia que nele, podia confiar a sua vida. O tempo foi passando e os dois foram crescendo juntos, não ficavam longe um do outro por muito tempo e parecia que um dependia do outro para viver. Os espancamentos continuavam e o martírio do garotinho, era infindável, era tanto, que por vezes ele pensava que a qualquer momento, ele iria ser morto, com um golpe fatal. Todas as vezes que o gatinho via o pai do garotinho chegando, seus pelos ficavam arrepiados e seu rabo ficava em pé como se soubesse que aquele homem representava perigo, que algo errado iria acontecer. Do nada, vinham as pancadas e muitas vezes, ele não sabia de onde elas vinham, ou o que o havia atingido, apenas sentia as dores em seu corpo, mas a dor maior era a que sentia em seu coraçãozinho magoado, com tanto sofrimento e tanto desprezo.

O garotinho e o gatinho ficaram cada vez mais amigos, fieis um ao outro e sempre que o pai batia no menino, o gatinho se aproximava, ficava olhando fixamente para o menino em prantos e em seguida miava, como se quisesse dizer que ele estava ali, compartilhando de sua dor, que ele se condoia com o sofrimento do seu amigo. Muitas vezes, o gatinho pulava para os braços dele e ficava roçando sua cabecinha no rostinho molhado de lágrimas, até que de alguma forma, o coração do garotinho percebesse que pelo menos alguém neste mundo, se importava com ele e ai, se acalmava um pouco, tinha algum alento em sua dor. Enraivecido com o comportamento do garotinho em relação ao gato, seu pai ameaçou várias vezes de matar o bichinho, coisa que levava o garoto ao pânico total, a ponto de pensar em fugir dali levando com ele seu único amigo, mesmo que fosse para morar no meio do mato, sem comida, sem casa, sem proteção, mas pelo menos, imaginava que poderia estar em segurança, salvando a vida de seu tão querido gatinho. Um dia, após levar uma surra muito grande, o menino perdeu os sentidos e ficou largado no chão da sala, como se fosse uma coisa qualquer, sem importância, seu sangue escorria de sua cabeça pela pancada violenta que havia levado e não havia ninguém para ajuda-lo, ninguém para socorre-lo. O gatinho que estava escondido embaixo da cama, quando percebeu que poderia sair em segurança, correu para onde estava caído o menino, roçou-se nele, miou varias vezes, mas não houve resposta.

O pobre animalzinho, de alguma forma, sentiu que algo estava muito errado e começou a miar, como se estivesse ficando louco, até que alguém incomodado com o barulho, foi ver o que estava acontecendo com o gato e encontrou o menino desacordado, e ai, pediu ajuda e o levaram ao hospital. Após dias nos hospital municipal, o menino se recuperou e voltou para casa. Durante o tempo em que ele esteve fora, o gatinho não saiu do lugar onde ele estava caído, ficava lá como se o esperasse, como se a qualquer momento, ele fosse entrar pela porta e ele pudesse correr, pular em seu colo, como sempre fazia. Quando o garoto entrou em casa, o gato correu e se atirou em seus braços, dando um pulo do chão, diretamente para peito do menino, que o abraçou e começou a chorar, pois ele sabia que o seu gatinho, além de ser seu único e fiel amigo, havia salvado sua vida e por isto, ele lhe seria grato, para o resto de seus dias. O pai do menino, ao ver a cena ficou enfurecido. Durante a madrugada, ele capturou o gatinho, colocou-o em um saco e o levou embora, para um bairro muito distante, de onde ele não poderia voltar sozinho. Quando o garoto acordou soube do fat, ele entrou em desespero, não podia de forma alguma entender, porque havia tanto mal no coração de seu pai e sua dor foi tanta, que nem mesmo conseguia chorar, apenas soluçava profundamente, incapaz de dizer, uma única palavra. Seu gatinho, seu amigo, aquele a quem ele devia a sua vida, o único que havia demonstrado amor e carinho por ele, tinha ido embora de uma vez por todas, para nunca mais voltar. Ele havia perdido algo que só havia encontrado nos olhos daquele animalzinho, algo que havia procurado em vão nas pessoas que o rodeavam, pois a dor que ele sentia por dentro era tão grande, que a única coisa que poderia ajuda-lo, seria encontrar nos olhos de alguém, uma janela para a alma.

As surras e espancamentos um dia pararam, o garotinho cresceu, superou muitas fases difíceis na vida, se transformou em um homem, aprendeu a viver, aprendeu a amar, compreender e perdoar as pessoas e eventualmente, encontrou uma pessoa que lhe abriu novamente a janela para a alma que desde aqueles tempos de menino, ele procurava, sem encontrar e aí, ele se casou, foi pai, viveu feliz com sua esposa e toda a sua família, mas ele jamais esqueceu, nem nunca se esquecerá, daquele que foi seu único e verdadeiro amigo daquela infância tão sofrida. Ele sempre carregou em seu coração, com muito amor, carinho e gratidão, aquele que conseguia enxergar através de seus olhinhos felinos, toda sua alma de criança, tão presa, profundamente ferida e magoada. Aquele gatinho, pequeno e indefeso como ele quando criança, em sua pureza de sentimentos, de amor simples, natural e incondicional, sem dúvida nenhuma, foi para ele, uma mensagem de Deus.


Nos pequenos olhinhos de um gato, um animal que a humanidade tão racional e cheia de sí, diz ser um ser irracional, quando mais precisava, o garotinho tão triste e infeliz, sempre encontrou, uma janela para a sua alma, tão ferida e magoada, para não morrer, de tanta dor.


Autor: José Aráujo

Fotografia: Meu gatinho - Fotógrafo: José Araújo

domingo, 3 de agosto de 2008

MARCAS DO AMOR...





Ele foi um dia um menino, foi um jovem, um adulto e um dia, ele se casou, os anos se passaram, vieram os filhos, outros problemas foram surgindo na vida e a relação do casal, já não era a mesma. Os dois já estavam com uma certa idade e conviviam por conviver. Em seu lar, eram ele, a esposa, a filha mais velha e o filho mais novo, pois o filho mais velho, havia se casado e foi morar em outra cidade. Ele era bem tratado pela esposa e pela filha, mas o que ele realmente precisava na vida, que era atenção, amor e carinho e isto, ele só recebia do filho mais jovem, que não o julgava, apenas o amava por ele mesmo. O garoto só enxergava nele, os valores internos, não os externos. Ele não queria nada em troca, o amava da forma mais pura e intensa, porque ele era seu pai. Quando ele pensava nisto, nos carinhos e atenção que recebia de seu filho, em sua memória vinha a lembrança de seu pai, daquele que representou tanto em sua vida, mas nunca esteve presente, quando mais precisava dele. Lembrar dos tempos de menino, sem ter o apoio e o suporte de um pai, era muito difícil, lembrar dos traumas que sofreu pela ausência dele em sua vida, sempre o maltratou e nestes momentos, as lágrimas sempre rolavam em sua velha face, quando a imagem daqueles tempos invadia seus pensamentos. Por isto a vida inteira ele correu contra o tempo, contra as horas, trabalhava a semana inteira, muitas vezes, nos sábados, domingos e feriados, pois ele não podia parar, precisava de alguma forma distrair sua mente, pois se parasse, ele iria pensar e pensando, iria relembrar de tudo que aconteceu em sua vida, e se relembrasse, iria enlouquecer.
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Chegou a um ponto, que a sua correria na vida, que fugindo dos pensamentos do passado, ele ficava muito tempo fora de casa e sua esposa, o acusava injustamente de a estar traindo, mas da sentença, ela não sabia sequer, uma virgula. Em um determinado momento, ele já não podia correr mais como fazia quando mais jovem, o peso do tempo já se fazia sentir em suas costas e suas pernas, não o deixavam caminhar direito, já se faziam presentes em seu corpo, todas as aquelas doenças que aparecem com a idade e que terminam com “ite”ou “ose” Artrite, Trombose, e etc. Havia dores em todas as juntas de seu corpo, mas dentre todas as dores, a dor maior era e sempre foi, a ausência de seu pai, uma ferida profunda que se abriu quando criança e que nunca mais cicatrizou. Numa manhã, após ouvir nervoso, ano, após ano, sempre as mesmas reclamações e acusações injustas de sua esposa, sendo criticado por tudo que fazia, após sentir que iria explodir por dentro, ele se retirou sem dizer uma palavra, pois seu coração sangrava, com tanta incompreensão por parte daquela que ele tanto amou. Ele saiu calado, porque achava que se entrasse em discussão verbal com ela, poderia passar mal e ele não queria dar a ela mais trabalho, já que ela agora o considerava um fardo, um traidor, pois nos tempos em que ele vivia correndo na vida, nada tirou da cabeça dela que ele a traia, mas nunca falou sobre isto com ele como deveria ter feito e assim, usava indiretas, não dando a ele uma chance de se defender, assim, ele apenas sofria calado, mais esta dor.
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Deitado em seu quarto, com as lágrimas rolando livremente em sua face, ele se lembrava de seu pai, de como ele sempre o recriminou por ter sido ausente em sua vida, ele finalmente compreendeu, que muito do que aconteceu em sua própria vida, foi causado pelo trauma da ausência de seu pai, mas agora, sendo um pai, sendo criticado pela esposa e ignorado pela filha que ele tanto amava, ele finalmente compreendeu que só é possível compreender um pai, quando se é pai. E entendeu, no mais intimo de seu ser, que só mesmo vivendo como um pai, a gente sabe das carências e consequências de tudo que nos envolve e ele soube, bem lá no fundo de seu coração, que a melhor coisa que ele poderia fazer era pedir perdão e perdoar o seu pai, mesmo sem saber se estava vivo, ou onde estaria naquele momento e sem ter ideia, de como procura-lo. Foi então, que veio uma vontade louca de escrever a ele uma carta, com um pedido de perdão e dizendo que o havia perdoado, mesmo sabendo, que não tinha para onde manda-la, mas ele sentia em suas entranhas, que precisava fazer isto, porque o papel onde ele a escreveria, certamente iria deixar gravadas nele suas palavras, cheias de emoção e então ele começou:
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“Pai, não sei onde você esta, nem se um dia ainda vou te encontrar, mas quero te pedir perdão. Perdoe-me se eu não pude perdoa-lo por tudo que você deixou de fazer por mim e por não ter sido tudo que eu esperava de você. Sabe Pai, desde que eu era bem pequenino, sentia a necessidade de ter pelo menos um pouquinho de sua atenção, quantas vezes eu quis sentir teus braços me protegendo num abraço carinhoso, quantas vezes quis ouvir tua voz falando comigo, me dando conselhos, me ensinando a viver. Pena meu Pai, pena que mesmo estando presente fisicamente no dia a dia de nossas vidas, você nunca tenha se dado ao trabalho de me dirigir tua voz, de pelo menos demonstrar que sabia da minha existência. Como eu gostaria de ter podido dizer a todo mundo com orgulho (Este é meu pai e ele me ama!). Você não faz ideia do vazio que deixou em mim, que sonhava um dia poder te abraçar e te beijar, mas você nunca se aproximou de mim. Pai, eu poderia ter sido muita coisa ruim neste mundo sem sua mão para me guiar pelo caminho certo. Se hoje sou quem eu sou, honesto, integro devo à minha mãe, que apesar de sofrer muito para nos criar, nunca negou seu carinho, sua compreensão e sua mão para nos guiar. Nunca pude esquecer meu Pai, que você aos 58 anos de vida resolveu trocar minha mãe depois de 40 anos de casamento, por uma garotinha de 18 anos. Jamais pude tirar do meu coração a dor de saber, que enquanto minha mãe morria com um câncer terminal, você a traia dentro de nossa própria casa com nossa empregada, com a qual você foi morar apenas 10 dias após a morte de mamãe. Olha Pai, tudo poderia ter sido tão diferente, nosso relacionamento poderia ter sido tão bom, se você me deixasse te amar e demonstrar meus sentimentos, se me tivesse aberto os braços e me dito “filho da cá um abraço !”, se você não tivesse sido tão frio e insensível comigo e com minha mãe. Tudo que você fez e deixou de fazer Pai, vai me acompanhar pelo resto de minha vida, num trauma que nada poderá apagar. Se minha vida hoje, apesar dos sofrimentos causados por sua ausência, tem momentos maravilhosos de alegria Pai, é porque em parte eu não segui seu exemplo com meus filhos e minha neta, porque eu procuro sentir as necessidades de cada um deles e procuro supri-las, da melhor maneira possível, mesmo que muitas vezes, por mais que eu tente e não consiga, pelo menos, me sinto bem por ter tentado. Eu Pai, ao contrario de você, transpiro amor e sensibilidade, jamais vou deixar passar uma oportunidade de dizer aos meus filhos e minha neta que os amo, que são a coisas mais importantes que me aconteceram na vida. 
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Eu hoje Pai, sinto o calor de um abraço, a doçura de um beijo com o coração aberto, sempre com espaço para acomodar a quem mais quiser nele entrar, pois sei que assim nunca estarei só neste mundo, que sempre haverá um coração que bate com muito carinho quando pensa em mim. Mas Pai, eu não quero apenas te dizer de minhas carências, nem apenas apontar erros cometidos pelos caminhos da vida, porque eu também errei e meus erros, não foram poucos pai. Quero dizer a você, que quando chega o dia dos Pais, apesar de todas as alegrias que tenho com meus filhos e neta, sinto tua falta, sinto que existe e sempre existira uma lacuna deixada por você em minha vida, da qual jamais poderei me livrar. Pai, não sei onde você esta, nem mesmo sei se você está vivo ou não, mas sei que nunca poderei esquece-lo, mesmo que minhas lembranças não sejam as melhores. Quem sabe se você estiver vivo, possa ler esta carta, possa ter mudado, possa ter aberto seu coração para o amor. Olha Pai, o que eu gostaria mesmo, era de poder te encontrar, te dar um beijo e um abraço, pedir-lhe perdão por tudo se já não for tarde demais. Perdão por não tê-lo compreendido, perdão por ter esperado muito de você, por não ter reconhecido suas limitações e mais do que tudo, por eu não ter sido bom o suficiente para ter te perdoado antes, muito antes, há exatamente 30 anos atrás, desde que nós nos vimos pela última vez.”
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“Perdão meu Pai, eu sinto e sempre vou sentir tua falta!”
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Quando ele terminou de escrever a carta, estava muito cansado, seus olhos pesavam, ele sentiu que precisava se deitar e descansar um pouco, e lentamente ele se deitou em sua cama, colocando a carta e caneta que estavam em suas mãos no criado mudo. Olhando para o teto, ele sentiu sua visão ficar turva, um frio imenso tomou conta de seu corpo e tudo foi ficando cada vez mais escuro, era como se mesmo sendo meio dia, a noite já tivesse chegado e com ela, as trevas da escuridão. Tudo foi desaparecendo lentamente e de repente, uma luz muito linda e brilhante, foi surgindo do meio de toda aquela escuridão. Em meio àquela luz, um vulto foi surgindo, aos poucos, tornando-se mais nítido conforme se aproximava, e finalmente, ele pode ver de quem era aquele vulto, e num milagre divino, seu coração se encheu de alegrias e emoção, era seu pai, e ele estava de braços abertos, dizendo a ele que tinha vindo busca-lo. Que ele o havia perdoado também e que iria leva-lo para um lugar, onde poderiam ficar juntos para todo o sempre e recuperar todo o tempo perdido, porque lá, naquele lugar, o conceito de tempo não existia, só existiam os sentimentos, onde o amor, era o Rei. Feliz e leve como nunca se sentiu na vida, ele estendeu seus braços ao pai que ele tanto amou em sua vida, e juntos eles se foram, flutuando lentamente, em direção à verdadeira Luz.
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Passou-se a tarde inteira e nem sua esposa, nem sua filha o procuraram em seu quarto, afinal, ele era inconveniente, não produzia mais, não tinha mais utilidade, só dava trabalho e despesas, não tinha mais valor. Mas o filho mais novo, quando chegou do trabalho para se alimentar antes de ir para a faculdade, quis saber porque seu pai não estava na mesa com eles para o jantar, sua mãe e sua irmã balançaram os ombros, como se quisessem dizer que era melhor assim, mas o rapaz revoltado com a falta de sensibilidade e compreensão das duas, levantou-se e foi ao quarto procurar pelo pai. Quando lá chegou, estava escuro, teve que acender a luz e quando pode ver direito, seu pai, estava deitado em sua cama, como se estivesse dormindo. Seus olhos estavam fechados, em seus lábios havia um sorriso e em sua face, uma expressão de paz que ele nunca havia visto no rosto de seu querido pai. Não foi preciso chegar muito perto, ele sentiu em seu peito que havia chegado o momento, que ele havia partido afinal. O rapaz leu a carta que seu velho pai havia escrito e enquanto lia, ele compreendia cada palavra escrita pelo seu amado pai, ele sentia suas emoções emanarem do papel, como se ele estivesse o ouvindo falar e lágrimas de profunda emoção correram livres de seus olhos, e ao terminar, ele tocou com carinho a face gelada de seu querido pai e disse a ele com uma voz doce e suave, da mesma maneira com que ele sempre o tratou, que ele sempre o amou, porque era o seu pai, porque sempre o sentiu presente em sua vida, mas principalmente, em seu coração. 
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No mais profundo de seu ser, o jovem sentiu que seu pai havia partido para finalmente ir ficar com seu avô, mas ele não se sentiu abandonado, pois ele sabia que ele estaria para sempre em seu coração, pois seu velho havia lhe deixado tudo que ele mais quis dele em sua vida, ele lhe deixou, as marcas do amor...
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Autor: José Araújo