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sábado, 27 de dezembro de 2008

UNIVERSO PAULISTANO - SP 455 ANOS



Queridos amigos e leitores, é com imensa satisfação que comunico a todos, que mais uma vez fui escohido para participar com um de meus contos em uma das antologias da ANDROSS EDITORA a qual será publicada no livro:


UNIVERSO PAULISTANO - CONTOS, CRÔNICAS E POEMAS
DE UMA CIDADE QUE NUNCA DORME


Dentro da agenda de comemorações do aniversário de São Paulo, o lançamento desta edição comemorativa e histórica será dia 14 de março de 2009 das 16h às 20h, no ESPAÇO WN situado à Rua Jorge Augusto, 668 em Vila Matilde, São Paulo, próximo à Estação do Metro Vila Matilde.

Trata-se de uma coletânea de textos literários de diversos autores, organizada pelo editor de livros, escritor e roteirista de HQ Edson Rossatto, e pelo Professor Doutor Carlos Francisco de Morais, cujo objetivo é homenagear São Paulo por seus 455 anos.

Na capa, podemos contemplar sob a objetiva de um fotógrafo, o imponente edifício Martinelli, o primeiro arranha-céu de São Paulo, que já foi palco de grandes bailes de gala e festas da alta sociedade paulistana, nos anos dourados desta magnifica obra de arquitetura. Todos os eventos se realizavam na suntuosa mansão de cobertura de Giuseppe Martinelli, seu construtor, e contavam com a presença de Reis e Rainhas, Principes e Princesas, assim como também presidentes e politicos de vários países, além de astros e estrelas do mundo artístico internacional. O majestoso edifício, também abrigou o luxuoso Hotel São Bento, onde ficavam hospedadas as celebridades que visitavam nossa São Paulo, a cidade de todos os tempos, de todos os credos, de todas as cores, de todas as raças.

O conto de minha autoria escolhido pela Andross, para fazer parte desta edição especial de comemoração ao aniversário de nossa querida São Paulo, foi:

SÃO PAULO, TRÂNSITO, SUOR, EU E ELA...

José Araújo – Autor e escritor paulista

sábado, 20 de dezembro de 2008

O ESPIRITO DE NATAL...



Só restavam poucos dias para o Natal em São Paulo e o vírus que provoca a febre das compras, já havia contaminado a maioria das pessoas da cidade. Mario, depois de muitos anos, ainda se lembrava daquele dia, como se fosse hoje. Havia em todos os lugares multidões de pessoas esperando impacientes os meios de transportes coletivos e quando ele chegavam, já vinham totalmente lotados e se isto acontecia desde cedo até a noite, nas outras épocas do ano, quando se aproximavam as festividades de final de ano, a situação se agravava muito mais. Os trens do Metro iam e vinham lotados. A estação Sé mais parecia um formigueiro. Os Shoppings Centers viviam lotados. Seus estacionamentos ficavam o tempo todo entupidos de automóveis. O transito nas redondezas ficava caótico. Uma loucura total. A Rua 25 de Março, era a campeã de vendas e da preferência dos consumidores de todas as camadas sociais, não só de São Paulo, mas de todo o Brasil, e até mesmo do exterior. A região do Brás, outra das áreas comerciais mais antigas e conhecidas da cidade, era uma das favoritas para se fazer compras em todas as épocas do ano, mais ainda, na época do Natal. Lá, no meio de muitos empurrões, cotoveladas, desaforos e disputas por mercadorias em ofertas, entre camelôs se degladiando com a polícia, era possível se comprar muitos presentes com pouco dinheiro e que certamente agradariam a todos que os recebessem. Ao final das compras, as calçadas da Avenida Celso Garcia e do Largo da Concórdia, se transformavam em um local onde as pessoas disputavam um grande premio, a todo o momento.
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Quem conseguisse pelo menos entrar em um ônibus, já se sentia de alguma forma vitorioso, mas conseguir pegar um deles, e ainda encontrar um lugar para sentar, era o prêmio mais desejado, quase impossível de se obter. Naquele tumulto de gente se esbarrando e se empurrando, carregados de pacotes e sacolas com presentes, muitos pensavam consigo mesmos, o que estavam fazendo ali, se todos os inúmeros amigos e parentes que iriam recebê-los, realmente mereciam tal sacrifício. No meio daquele burburinho todo, daquela disputa quase que selvagem para conseguir embarcar num coletivo, Mario foi literalmente carregado pelos degraus acima ao entrar em um deles, e acompanhado de seus pacotes e sacolas, ele se viu dentro de uma enorme lata de sardinha. Sem poder respirar direito, ele se viu no meio daquela agonia, apertado, amassado, empurrado e muitas vezes tendo que ouvir insultos e ofensas de passageiros menos pacientes. Sentindo-se mal com toda aquela situação em que se encontrava, ele pensava que aquele não era o espírito de Natal que ele aprendeu quando pequeno e no qual ele foi criado. As pessoas haviam esquecido qual era o verdadeiro significado do espírito de Natal. No meio daquela gente toda, nervosa, ansiosa e desesperada para poder sair daquele sufoco, que deveriam estar achando que todos os que estavam dentro daquele coletivo, só estavam lá para atrapalhar a vida, tomando seu espaço, seu tempo, ele pensou que daria qualquer coisa para um lugar para sentar. Seus pés, suas pernas, seus braços e sua cabeça, doíam além do que ele podia aguentar.

Ele já não era nenhum garotinho. Já era avô e pelo menos para sua netinha, ele sabia que estava levando o presente certo, que ela realmente merecia ganhar o presente que tanto esperava e mentalmente, ele tentava se convencer, de que todo aquele sacrifico iria valer a pena. Do ponto onde ele pegou o ônibus, até chegar em sua casa, havia uma grande distancia a ser percorrida, e por um daqueles estranhos estados em que ficamos quando estamos exaustos, Mario não percebeu que as pessoas aos poucos foram desembarcando pelo caminho, e que já havia espaço, pelo menos para respirar. As pessoas com suas feições sérias e distantes não se olhavam. Cada um que estava viajando naquele coletivo, como em muitos outros pela cidade, só estavam preocupadas consigo mesmas, com seus problemas, e o próximo para eles, não representava nada mais do que um estorvo em seu caminho. Um incomodo que só agravava o desconforto físico e mental naquela corrida louca e alucinada, pelas compras de Natal. Depois que muitos já haviam decido em seus pontos, ainda havia muita gente dentro do coletivo. De rabo de olho, Mario pode ver um garotinho de cabelos loiros, puxando a manga da blusa de uma senhora, perguntando se ela queria se sentar. O menino devia ter uns seis, ou sete anos. Ele segurou-a pela mão e em silêncio, e a levou para perto de onde estava sentada uma outra senhora que ia se levantar para desembarcar. Quando ela se levantou para descer, ele gentilmente ajudou a outra a sentar e a arrumar no colo, todos os pacotes e sacolas que ela carregava.
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Mario ficou observando o garoto com atenção. Ele ia de banco em banco e perguntava às pessoas que estavam sentadas onde iam descer e quando se aproximava o ponto de um deles desembarcar, ele se aproximava de alguém que estivesse precisando realmente de um lugar para sentar e levava a pessoa até o banco que iria ser desocupado. Alguns naquele coletivo dariam qualquer coisa para conseguir um assento, de tão exaustos que estavam. Não demorou muito tempo foi a vez de Mario. O garotinho puxou a manga de sua blusa e quando ele olhou para baixo, ficou atônito com a beleza dos olhos do menino. Sem poder pegar na mão de Mario porque estavam ocupadas com sacolas, o garotinho segurando seu braço pediu que ele o seguisse. Foi um momento, que Mario jamais esqueceu pelo resto de sua vida. Quando Mario já estava sentado no lugar do passageiro que desceu, o menino o ajudou a arrumar as suas sacolas, deu um sorriso, e partiu para ajudar outra pessoa a se sentar. Todos que estavam naquele ônibus e em todos os outros na cidade, como era usual, evitavam olhar nos olhos uns dos outros. Queriam ter o menor contato possível com estranhos, afinal, a vida moderna nas grandes cidades é tão perigosa. Ninguém sabe ao certo do o próximo é capaz. Contudo, naquele ônibus onde Mario estava, aos poucos, todos já haviam notado a ação do garotinho entre eles, e começaram timidamente a trocar sorrisos e olhares.
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Uma senhora abriu sua sacola e deu um pequeno panetone para a moça grávida que estava sentada ao seu lado. Logo as duas começaram a conversar, trocando sorrisos. Um senhor que estava sério lendo seu jornal, tirou a coluna infantil e com um sorriso nos lábios deu ao menino que estava no colo da mulher que estava sentada ao seu lado, que agradeceu a gentileza, pois seu filho adorava ler os quadrinhos da Mônica e do Cebolinha. Duas senhoras sentadas lado a lado, carregadas de pacotes e sacolas, até então pareciam que iriam travar uma batalha por espaço no banco onde estavam, mas de repente, num solavanco do ônibus, um pacote caiu da sacola de uma delas e foi parar embaixo do banco. Ele havia caído num lugar de difícil acesso e nenhuma delas teria condição de pegá-lo. No banco da frente estava sentado um velhinho franzino e quando ele percebeu o pacote caído, com uma certa dificuldade, ele o pegou. Por uma daquelas coincidências da vida, quando ele perguntou a quem ele pertencia, nenhuma das duas pode dizer com certeza de quem era ele, pois os presentes das duas tinham sido comprados na mesma loja e as embalagens, eram exatamente eram iguais. O velhinho ficou segurando o pacote em sua mão e seus olhos pareciam estar sorrindo para elas, esperando que uma delas o pegasse. Foi então que as duas senhoras se olharam constrangidas pela situação e de repente, começaram a sorrir. As duas disseram ao mesmo tempo, como se tivessem combinado antes, que o presente era para ele. O velhinho sorriu, emocionado e surpreso agradeceu o presente às duas, e se ajeitou em seu banco. Em seu rosto havia um ar indescritível de felicidade e contentamento. Ele não tinha ido comprar presentes. Estava apenas voltando de seu trabalho, que mal dava para o sustento dele e de sua velha esposa, e nem por sonho, esperava ganhar alguma coisa naquele Natal.
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As duas senhoras a partir do que aconteceu, encontraram muitos outros assuntos e estavam conversando e sorrindo e assim foi, até onde uma delas teve que desembarcar. Elas se despediram com beijos e abraços, desejando um Natal muito feliz junto às suas famílias. Trocaram telefones e prometeram se comunicar o mais breve possível. Em outro banco, estava um rapaz que era deficiente físico que até então, estava com uma expressão de tristeza em seu rosto. Ele sem querer deixou escorregar sua muleta que estava apoiada no banco e ela caiu no pé de outro rapaz que estava em pé. O rapaz sentiu a dor da pancada, mas ao invés de retrucar como normalmente o faria, sem levar em consideração a situação do outro rapaz, ele a pegou e quando ele foi lhe entregar para que a segurasse, suas mãos se tocaram. Eles sorriram um para o outro, e daquele momento em diante, seguiram trocando ideias e sorrindo, até o ponto final. Era mais uma amizade que estava começando e o rapaz deficiente, já não tinha em seu rosto aquele ar de tristeza. Em seu lugar havia uma expressão de contentamento e alegria por ter conhecido o outro rapaz que o tratou tão bem. Que respeitou sua condição, mas o tratou como se fosse uma pessoa normal, como todas as outras. Aos poucos, até o ponto final, as pessoas começaram a se relacionar mais abertamente. O clima dentro do coletivo, nem de longe lembrava aquele que era antes, quando Mario subiu a bordo.
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Todos estavam tão distraídos com seus novos amigos que ninguém percebeu quando o menino desceu, mas para Mário, que observava atento os acontecimentos, a atitude daquele menino mudou alguma coisa dentro dos que estavam dentro daquele coletivo. Todos relaxaram e tiveram um súbito sentimento de calor humano e curtiram alegremente cada segundo que tiveram a oportunidade de ficar juntos, até que cada um teve que descer em seu ponto de destino. Certamente, cada um que desceu depois de ser envolvido pelo espírito do garoto, não saltou, mas flutuou para fora do ônibus, carregando um sorriso largo e sincero nos lábios, desejando a todos os passageiros que ficavam e também ao motorista e ao cobrador, um Feliz Natal. Quando chegou a vez de Mario descer, sentindo-se leve, sem nenhum peso no corpo, ou na alma, ele olhou para a decoração de Natal das casas de sua rua que brilhavam na noite. Eram as mesmas que ele havia visto na noite anterior, mas para ele, era como naquele momento aquele brilho fosse muito diferente. Era como se todas aquelas luzes multicoloridas fossem outras. Parecia que as velhas tinham sido trocadas por novas. O brilho delas agora, era infinitamente mais intenso e envolvente. Mario parou no meio da calçada. Olhou ao seu redor. Observou atentamente cada detalhe da decoração da vizinhança. Seu peito estava leve, livre de qualquer angustia ou sentimento negativo. Uma emoção intensa tomou conta de seu coração. Ele percebeu que a diferença de brilho e cores que ele havia notado na decoração de Natal, foi porque aquele menino do coletivo, o havia feito enxergar o verdadeiro espírito de Natal, do mesmo jeito aberto e cheio de fé com que ele via, quando tinha seis ou sete anos de idade. Com os olhos cheios de lágrimas invadidos pelo espírito de Natal, sentindo em todo o seu ser, o puro poder da fé em Deus, Mario se lembrou de um texto que leu em algum lugar, e que ele associou naquele momento aos seus pensamentos, e ele dizia:
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“Então, numa noite de dezembro, em algum lugar do tempo e do espaço, uma criança virá, e com a sua luz, conduzirá seu povo pelas mãos. Ela os guiará pelos caminhos que os levarão à terra prometida. Onde encontrarão com sua ajuda, se assim o quiserem, um mundo melhor para se viver.”
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Mário atravessou a rua, pegou a chave para abrir a porta e quando ele ia coloca-la no buraco da fechadura, a porta se abriu.
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Sua netinha que tinha a mesma faixa de idade do garotinho que mudou a sua vida para sempre, abriu a porta, estendeu seus braços e lhe disse com o mais lindo sorriso que uma criança pode dar, que ela o amava muito. Ouvindo aquilo, ele se sentiu um homem realizado. Pronto para comemorar o nascimento do menino Jesus ao lado de um anjo lindo, e que tinha nos olhos, a mesma beleza e brilho que havia agora em seus próprios olhos, e nos olhos daquele garoto do ônibus, que desembarcou ninguém sabe onde, nem quando.
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Havia nos olhos dele e de sua neta, a mesma beleza e pureza que há nos olhos de todas as crianças. Uma força divina que tanto o impressionou e que transformou de forma efetiva, a vida de Mário e de todos aqueles que se deixaram levar pelo seu espírito de luz, a partir do momento em que aceitaram ser guiados, cada um na sua vez, ao tão desejado banco, para sentar e descansar, redescobrindo dentro de si mesmos, o verdadeiro e único, espírito de Natal!
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Autor: José Araújo
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Fotografia: As Cores do Natal - Acervo pessoal - Ano 2006
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Fotógrafo: José Araújo

domingo, 14 de dezembro de 2008

A FADA MADRINHA E O FEITIÇO DA INDECISÃO...



Você acredita em fadas e duendes? Não? 
E se eles existirem? 
E em fantasmas? Você acredita? Também não? 
E se eles existirem?
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O sol surgia por detrás dos arranha céus da cidade, revelando-nos poucos espaços existentes entre os prédios da grande metrópole, o céu azul dourado, das luzes do amanhecer. Era uma linda manhã de sexta feira na capital paulista. Fernando tomou seu café da manhã, se preparou na mesma rotina de sempre para mais um dia duro de trabalho. Exatamente às 07h00mins ele saiu de casa em direção ao ponto de ônibus. Naquela manhã, ele estava sentindo-se particularmente cansado. Não era somente um cansaço físico. Era algo muito mais profundo e desgastante. Nando estava à beira de uma crise nervosa, provocada pelo stress físico, mental e emocional causado pelo seu trabalho desgastante e pelos últimos acontecimentos em sua vida. Enquanto ele caminhava na direção do ponto de parada dos coletivos, ele pensava na pilha enorme de papéis que havia em cima de sua mesa, que a cada dia, crescia mais e mais. Após alguns minutos de espera, sua condução chegou, e como sempre, o veículo de transporte coletivo veio lotado. Por muito pouco, ele não conseguiu embarcar. Sentindo-se mal como já o estava antes de sair de casa e com aquele acumulo de passageiros, provocando até mesmo falta de ar, quando o ônibus ia passando pelo parque do Ibirapuera, ele resolveu desembarcar. Nando estava precisando de um pouco de ar puro. Precisava literalmente respirar. A passos largos ele entrou por um dos portões do parque. O mais rápido que ele pode. Lá, ele começou uma caminhada lenta pelas alamedas. Era cedo ainda, mas já havia alguns frequentadores praticando esportes. Uns andavam de bicicleta, outros caminhavam, e outros, mais afoitos, preferiam correr. Contudo, ele estava tão confuso, perdido em seus pensamentos, que nem ao menos percebeu a presença das outras pessoas. Apenas caminhava em frente, parava de vez em quando, olhava para os lados, como se estivesse assombrado com alguma coisa, e logo depois, continuava a caminhar.
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Nando além de trabalhar muito como empregado era um escritor e amava escrever seus contos que publicava semanalmente. Ninguém compreendia, como um cara como ele, que trabalhava sem parar durante todos os dias da semana, conseguia ainda tempo para escrever. A resposta era bem simples. Ele escrevia nas noites de sábado para domingo. Ele varava a noite escrevendo seus contos, pois ele tinha verdadeiro amor pelo que fazia. Na verdade, era a coisa que ele mais gostava de fazer na vida. Esse era o seu ritmo e se não fosse assim, se ele não tivesse a literatura como uma válvula de escape, já teria pirado, há muito tempo atrás. Na semana anterior, ele havia recebido um convite de uma editora para ir para a Espanha e lá, lançar uma antologia de seus contos, mas para isto, ele teria que largar tudo por aqui e ficar por lá até o lançamento do livro. Foi uma surpresa para ele. Algo que nem sequer havia passado por sua cabeça. Publicar um livro dele em outro país seria maravilhoso. Contudo, apesar da alegria de saber que seu trabalho como escritor estava sendo reconhecido até mesmo no exterior, ele ficou em total indecisão. Ele tinha família, sua esposa e seus filhos que dependiam dele financeiramente e para garantir o atendimento das necessidades deles, ele não poderia simplesmente largar seu emprego e seguir em busca de sua realização profissional. Sem condições financeiras para poder arcar com as despesas dele no exterior e da família aqui, ele estava se sentindo, arrasado, deprimido, acuado e pressionado pelas responsabilidades e obrigações que ele tinha que cumprir. Nando já não era mais um jovem. Estava na faixa dos 50, e sabia que a estas alturas, a cada dia que se passasse, menos chances ele teria de se realizar profissionalmente e poder largar o emprego que o estava matando aos poucos, mas que ele era obrigado a aguentar. Não havia outra opção. Desde o dia em que recebeu o convite, após ter vivido a angustia de uma indecisão e depois a frustração por não poder aceitar por causa de suas responsabilidades, tudo que aconteceu, só contribuiu para agravar seu baixo astral. Nando trabalhava há longos anos em uma empresa, onde tinha um cargo de responsabilidade, mas seu cargo era só um nome no registro da carteira profissional. Na realidade, ele era nela, o famoso Bombril. Um personagem tão apreciado no mercado de trabalho no Brasil, pelo seu baixo custo, grande produtividade e alta rentabilidade.
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Afinal por que ter três, quatro, ou cinco funcionários em um setor que pede até mais do que isto, se um só pode fazer tudo sozinho? Ele muitas vezes se sentia exatamente como uma Lula. Tinha momentos, em que ele era obrigado a dar conta de várias coisas ao mesmo tempo, e para isto, precisava de mais braços, mas tudo que tinha, eram os seus. Quando pedia a contratação de pelo menos mais um para ajudar, a resposta era sempre a mesma. Ele recebia um não como resposta. Segundo a empresa, não poderiam arcar com os custos de mais gente no quadro de funcionários. As funções que ele exercia no seu papel de Bombril, exigiam dele um esforço supremo, tanto físico, como emocional, porque cuidar da parte financeira de uma empresa como a que ele trabalhava, sem o menor suporte, tendo também que executar tarefas inerentes a outros setores que não o seu, era uma loucura total. Mas para ele, aquela loucura era necessária porque ele precisava de seu emprego e trabalhava sem parar. De segunda a segunda, sem descansar. Ele detestava o que fazia e só trabalhava naquela área, por ter sido sua única chance real de um emprego, após ter ficado um ano desempregado ao completar seus 40 anos de vida. Desde há muito tempo atrás, com esta idade, quase todas as empresas parecem fechar as portas para um trabalhador como ele no Brasil. Não importam quais são suas qualificações, a desculpa em geral, é que a política das empresas no mundo da globalização, é ter em seu quadro gente jovem e dinâmica. 
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Sempre envolto em seus pensamentos, ele caminhou um bom tempo no parque, e quando decidiu ir embora, passou a andar na calçada que beirava um dos lagos. O sol já estava alto e seus raios refletidos nas águas, pareciam criar um ambiente mágico, mas isto, ele nem percebeu. Quando ia passando próximo de onde os funcionários do parque deixavam ancorado o barco que usavam para fazer manutenção na fonte dançante, ele não pode deixar de ver algo voando sobre as águas, e fosse o que fosse, tinha asas transparentes que brilhavam à luz do sol e os reflexos dos raios dele nas águas, se refletiam também nas pequenas asas, criando um efeito multicolorido sem igual. Nando parou de andar e ficou observando o voo do que lhe parecia a princípio ser uma Libélula. Em certo momento, aquilo que ele via pareceu se aproximar, e ele, sem entender o porquê, sentiu que precisava ver melhor para identificar o que era. Ao firmar as vistas e com a proximidade maior, ele ficou pasmo e não pode acreditar no que via. Era uma Fada! Ela era tão pequenina, mas sua beleza era algo fenomenal. Uma jovem de cabelos loiros, usando um vestido tão leve e esvoaçante, que o deslocamento de ar, provocado pelas batidas de suas pequenas asas, o fazia balançar suavemente no ar. Incrédulo, ele balançou a cabeça e pensou que estava tendo alucinações.
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No fundo, no fundo, ele achou que tinha chegado a hora dele perder de vez a sua razão. Contudo, a bela fadinha veio lentamente em sua direção e quando chegou bem perto de seu nariz, com uma voz doce e suave, disse a ele que ela não era sua imaginação. Nando respondeu mentalmente, quase que mecanicamente, que não acreditava em fadas. Ela, lendo seu pensamento, disse que ele estava enganado. Que elas existem sim e que ela, era a prova disto. Ela perguntou se ele se lembrava de que na noite passada, ele tinha tentado acertar com uma vassoura, um vaga-lume que voava em seu quarto. A fadinha disse a Nando que aquilo que ele achava que era um vaga-lume, na verdade era ela mesma, e que estava lá em seu quarto, para observa-lo e descobrir uma maneira de o ajudar. Passando as mãos pelos cabelos, Nando ainda estava atônito com os acontecimentos e não conseguiu pronunciar uma única palavra. A bela fadinha, percebendo que ele estava lutando consigo mesmo para acreditar no que via, disse que iria lhe provar que ela era real. Com um sorriso lindo e segurando uma varinha de condão na mão, ela lhe disse que seu nome era Esmeralda, a Fada do Lago, como todos a chamavam no parque. Ela disse também, que ele era um homem de sorte. Que fadas como ela, só aparecem para um, entre milhões de humanos, e que ela, o havia escolhido para ser a sua Fada Madrinha. Ela tinha vindo até ele para lhe conceder a realização de um desejo que mudasse a vida dele para melhor, mas deixou bem claro, que seria apenas um. Poderia ser qualquer coisa. Aquilo que ele lhe desejasse. Por mais difícil que fosse de se conseguir, ela o atenderia. Num piscar de olhos, mas se o que ele fosse pedir iria fazê-lo mais feliz, ou não, isto era com ele. A estas alturas, Nando já estava se recuperando do choque que levou ao perceber que aquilo que ele achava ser uma libélula, na verdade era uma Fada, e mais ainda! Por saber que ela era a sua Fada Madrinha! Com certo esforço, ainda resistindo à ideia de aceitar que as fadas existem, ele respondeu a ela, que não acreditava em tudo aquilo. Que para ele, coisas assim só aconteciam em contos e historias da carochinha.
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Ela sorriu novamente e pediu com sua voz suave, que ele fizesse o seu pedido. Mais uma vez, ela deixou bem claro que poderia ser qualquer coisa. Nando de alguma forma, bem lá dentro de seu coração, já estava pensando em fazer seu pedido. Mas a razão gerava uma dúvida imensa em sua mente. Como uma fada poderia estar ali naquele lugar? Um ser mitológico em pleno parque do Ibirapuera, e voando sobre as águas do lago! Como ela poderia saber sobre o vaga-lume que ele quis acertar com uma vassoura em seu quarto, na noite anterior? Tudo aquilo seria mesmo verdade? As fadas realmente existem? Ele se fez estas e muitas outras perguntas, mas não conseguiu responder a nenhuma, e naquele instante, de uma forma intensa e misteriosa, uma vontade imensa de atender ao apelo da fadinha, tomou conta de seu ser. Ele começou a pensar no que pedir. Mas teria que ser algo muito especial. Afinal, aquela poderia ser a sua única chance na vida, de se realizar e poder se libertar daquela prisão que era o seu trabalho e que o aniquilava dia a dia. Onde ele não via a menor perspectiva de melhora, e pior, um trabalho que não tinha nada a ver com ele. Nando se submetia àquilo apenas por obrigação, por necessidade. Já haviam se passado muitos anos de sua vida naquele lugar que vinha acabando com ele lentamente. Sugando suas energias, gota, por gota. Em seus pensamentos, ele se perguntava se deveria pedir dinheiro, joias, propriedades. Mas a indecisão o estava martirizando. Ele já havia sentido antes o peso e as consequências daquele sentimento. Cansado, stressado e debilitado, tanto física como emocionalmente, se não fizesse o pedido certo, poderia se arrepender pelo resto de sua vida. Pedir mulheres, poder, status, lhe parecia tão fútil. Tão sem sentido.
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A fadinha é claro, lia em sua mente tudo que estava pensando e lhe disse que ele teria que fazer um pedido concreto. Nada de abstratos. A coisa ficou pior quando ela lhe disse, que não havia lhe falado nada antes, porque achava que ele fosse decidir logo o que pedir, mas já que ele estava demorando tanto, era preciso lhe dizer que ele só tinha 10 minutos a partir do momento em que ele começou a acreditar e pensar em fazer o seu pedido. Que já haviam se passado 8 minutos, e que ele precisava se decidir. Caso contrário, quando acabasse o tempo, ela iria desaparecer no ar e ele teria perdido a maior chance de sua vida. Nando se apavorou.
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Ele olhou em seu relógio e o ponteiro dos segundos, lhe pareceu estar andando mais depressa do que o normal. Seu coração começou a bater mais forte enquanto desesperadamente, ele tentava decidir o que pedir. Um carro importado? Uma mansão? Um avião? Não! Uma empresa aérea! Quem sabe uma rede de Hotéis? Um trono num país dos emirados Árabes? Mas, e se ele pedisse muito dinheiro? Com toda a grana ele poderia comprar tudo que quisesse! Tudo aquilo com que sonhou durante toda a sua vida e não pode ter! Um quinquilhão? Um milhão de quinquilhões? Mas ao mesmo tempo ele achava que pedir dinheiro seria uma grande tolice! Sua mente trabalhava num ritmo frenético, e a fadinha, tentando apressa-lo por medo de não poder lhe conceder o pedido, disse para ele se apressar e resolver de uma vez por todas! Nando, sentindo-se acuado e pressionado, não conseguia se decidir por nada. A pequenina quando só faltavam apenas 10 segundos para acabar o tempo, começou uma contagem regressiva, e o coração de Nando naquele instante, já estava quase saindo pela sua boca. 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4... Tem que ser agora! Como um raio fulminante, finalmente as palavras saíram da boca de Nando. Ele disse que queria outra fadinha igual a ela! PUFFFFFFF!!!!!!! A fadinha desapareceu no ar em meio a uma nuvem de fumaça e no mesmo lugar onde ela estava flutuando quando desapareceu, surgiu outra, exatamente igual a ela.
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Nando, ainda meio desconfiado, a principio achou que poderia ser a mesma, afinal, ele ainda não estava totalmente convencido daquela situação. Contudo, a nova fadinha, cujo nome também era Esmeralda, começou a falar e ele ouviu toda a ladainha de novo. Então, ele pensou que se fosse a mesma, ela teria continuado a falar com ele, do ponto onde ela havia parado entes de desaparecer. Não! Definitivamente ela não era a mesma. A que estava bem na sua frente agora estava repetindo tudo que ele havia ouvido antes da outra que desapareceu. Naquele momento, ouvindo-a falar, mais uma vez ele estava sentindo-se pressionado a resolver o que pedir, e rápido! Ela o estava apressando e ele teria que resolver qual seria seu pedido, em muito pouco tempo! Que injustiça! Num momento como aquele, tão cheio de magia! Talvez até mesmo, aquele fosse o único e último de sua vida! Ele decididamente precisava de mais tempo! Porque ele deveria se apressar e correr o risco de fazer o pedido errado, e depois sofrer as consequências disto?

A fadinha estava ficando cada vez mais impaciente. Nando pensava e pensava, mas não conseguia se resolver por nada. E se ele pedisse uma frota de navios de cruzeiro? Uma companhia de petróleo? Uma Ferrari quem sabe? Saúde? Amor? Um aperto enorme em seu peito começou a lhe incomodar, e aquele aperto, ele já conhecia muito bem. Porque era tão difícil escolher? Porque não conseguia decidir? Qual seria o motivo pelo qual ele estava se sentindo tão mal por dentro? Porque sua mente estava bloqueada naquele instante tão especial? Ele não conseguia controlar seus pensamentos. Algo muito mais poderoso do que seu poder de raciocínio o estava impedindo de decidir. Era como se ele tivesse sido vitima de um feitiço maléfico, do qual ele não podia se livrar. Porém, a nova fadinha, mais decidida a ajudar do que a outra, ansiosa por vê-lo sair do sufoco em que estava a sua vida, antes de começar a contagem regressiva, como a anterior havia feito, disse a ele, que no ultimo momento, ele sempre poderia optar por pedir outra fadinha como ela, e assim, ganhar tempo para pensar melhor, e decidir depois. Mas agindo assim, protelando sua decisão, deixando que o medo e a insegurança o impeçam de enxergar o que realmente quer em sua vida, ele nunca mais viveria em paz, e sofreria, para todo o sempre, a mercê do feitiço da indecisão!
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Quando decidimos por algo, temos que saber que ao mesmo tempo teremos que deixar muitas outras coisas para trás. Que o que acontece na verdade, quando vivemos uma indecisão, é que no fundo, temos dúvidas se vale a pena mudar alguma coisa, ou deixar como esta, ou então, se vale a pena decidir por arriscar. Contudo, não é possível viver eternamente sem mudanças, porque a própria vida já é constituída, principalmente de mudanças. Assim como também, ela é curta e mal temos tempo de aprender tudo que ela tem a nos ensinar. Então, nada mais nos resta, senão decidir por arriscar, mas para arriscar qualquer coisa, é preciso em primeiro lugar, se livrar de um fantasma que nos apavora, que nos enfraquece. Um ser invisível e sinistro que é criado por nós mesmos e exerce sobre nós um poder enorme, capaz de nos fazer sofrer muito, até mesmo nos tirar a chance de sermos felizes, realizados na vida, e toda a força dele esta num único sentimento humano, a nossa própria indecisão!
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Autor: José Araújo
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Fotografia: A fadinha – Fotógrafa: Roberta Teixeira

sábado, 6 de dezembro de 2008

LIPE, O BOTO COR DE ROSA
E AS ONDAS DA PORORÓCA...


A meio caminho da nascente do rio Araguari, em um de seus braços, num lugar ainda quase intocado pelas mãos dos homens, vivia uma comunidade de botos. As águas eram tão limpas, que era possível de ser ver o fundo de tão transparentes. Peixes e outros animais conviviam naquele paraíso em perfeita comunhão. O grupo de botos vivia como uma grande família e todos obedeciam a regras de comportamento, que haviam sido estipuladas pelo conselho dos mais velhos, que considerados por todos sábios na arte de viver, governavam a todos, sem exceção. Felipe, um boto cor de rosa, era simplesmente Lipe para os amigos e para a família. O jovem boto, desde pequeno, não concordava com muitas das imposições a que ele e os outros de seu grupo tinham que se submeter. Cada membro da comunidade tinha seus deveres e obrigações a cumprir, em prol de si mesmos e do resto do grupo. Logo pela manhã, todos os dias, eles acordavam atarefados, sempre preocupados em cumprir suas missões. Era um corre, corre o dia todo, mal paravam para se alimentar e quando o faziam, era por questão de minutos, pois não havia tempo a perder. A vida deles era tão corrida, que nunca tinham tempo para si mesmos, muito menos para se relacionar com os amigos e parentes como se deve. Lipe foi crescendo e seu comportamento na mente dos outros botos, era de alguém que não tinha mais jeito, um desajustado, um perdido na vida. Ele era incompreendido por aqueles a quem ele amava, pois tudo o que ele fazia, era sair bem cedo pelos arredores em busca de correntezas que ele adorava surfar. Era tão grande a sua paixão pelo que fazia, que ficava imaginando se um dia ele iria encontrar na vida, uma onde enorme, onde pudesse sentir todo o prazer de poder domina-la, deslizando nela, desde sua crista até onde ela terminasse. Os mais velhos, já haviam perdido as esperanças de que ele um dia mudasse e apesar de muitos conselhos e avisos sobre as conseqüências de seu comportamento impetuoso, a cada dia, mais e mais, ele sentia a necessidade de perseguir o seu sonho.

Lipe observava os outros membros de seu grupo, principalmente os mais velhos. Tudo que ele via neles, era a imagem da tristeza, da desolação e por mais que negassem, uma grande frustração. Mesmo estando todos juntos, recebendo o amor e o carinho dos parentes e amigos, Lipe sentia que lhes faltava alguma coisa. Nos olhos de cada um, havia um vazio imenso e quando eles eram questionados sobre quais eram suas expectativas para suas vidas, a resposta invariavelmente era que tudo que precisavam estava ali naquele lugar. Ele nunca conseguiu engolir esta vaga explicação e por mais que tentassem ser convincentes, não conseguiam faze-lo acreditar. Para ele viver não poderia significar somente aquilo. Tinha que haver algo mais excitante, mais gratificante para a alma e para o coração. Apesar dos contras de sempre, Lipe continuava em suas excursões pelos rios adjacentes. Ele precisava de muito mais para se sentir vivo. O tempo passou e ele agora, com 2,50 metros de comprimento, pesando 90 quilos, já era um adulto. Já fazia um bom tempo que ele não ouvia mais nãos como respostas aos seus pedidos para ir mais longe do que lhe era permitido. A única coisa que ainda faziam, era lhe dar o mesmo conselho de sempre. Ele nunca deveria se atrever a ir em direção à foz do Rio Araguari. Dizendo que ir naquela direção, era procurar a morte com as prórpias mãos. Diziam que mais abaixo do rio, havia homens maus que poderiam captura-lo, e se o fizessem, seria o seu fim. O desejo de descobrir o que realmente havia naquele lugar proibido, era para ele como um combustível que o instigava a ir até lá. Certo dia, ele se encontrou com um peixe enorme que nunca havia visto na vida e ele parecia velho e cansado. Ao se aproximar do estranho com muito cuidado, ele se apresentou, trocaram cumprimentos e começaram a conversar.

O velho peixe disse que estava vindo da foz do rio, onde tinha ido em busca de realizar um velho sonho, e em seus olhos, enquanto ele lhe contava os detalhes de sua aventura, havia uma expressão de paz e plenitude, que encantou o jovem boto. O viajante lhe disse também, que lá, ele havia encontrado a maior onda existente em todos os rios e nela, ele havia surfado, exatamente como era o sonho de Lipe. Seu jovem e intrépido coração bateu mais rápido e uma estranha sensação tomou conta de seu ser. Era uma vontade louca de ir ao encontro da tal onda que o velho peixe disse se chamar Pororoca. Lipe, o jovem e impetuoso boto cor de rosa, ao terminar a conversa com o estranho, resolveu que iria partir em busca da realização de seu sonho. Na manha do dia seguinte, mesmo contra a vontade de todos do seu grupo, ele partiu. Enquanto ele descia o rio, ia observando a paisagem ribeirinha e pelo caminho, conheceu muitos outros peixes e bichos da floresta, que ele nunca tinha visto em sua vida. A sensação de liberdade já havia tomado conta dele e o lugar onde ele vivia com os seus, já estava há muitos quilômetros atrás. Ao contrário do que lhe disseram, ele não viu nada que representasse perigo de vida durante uma boa parte de sua jornada. Contudo, ao virar uma curva do rio, ele deu de cara com um barco enorme e nele, haviam homens armados, alguns com arpões e outros que empunhavam enormes varas de pescar.

Naquele momento, ele se lembrou do que lhe disseram sobre o bicho homem, e para não arriscar, ele tentou fazer um desvio, mas foi capturado por uma rede fixa que estava armada embaixo d'água. Era final de tarde, quase caindo a noite e os homens não perceberam a movimentação da rede, e lá ele ficou. Preso sem poder se libertar e quase asfixiado por precisar subir à tona para respirar. Para sua sorte, talvez até por uma providencia divina, uma indiazinha havia percebido que ele estava preso na rede. A pequenina só esperou cair a noite e mergulhou em seu socorro. Ao alcança-lo, cuidadosamente ela cortou a rede o suficiente para ele poder passar. Quando ele conseguiu subir à superfície, já estava passando mal pela falta de oxigênio e ao respirar, foi como se tivesse renascido naquele instante. A indiazinha que estava sentada agora na margem do rio, observava seus movimentos e em seus lábios, havia um sorriso sincero de satisfação. Lipe se aproximou dela, quase tocando a margem, balançou a cabeça tentando com com isto dizer a ela que estava muito agradecido por ter sido salvo. A menina sorriu e olhando diretamente em seus olhos ,e fez um sinal para ele ir. Ele compreendeu a mensagem, e partiu.

Agora, sua viagem iria ser muito mais cautelosa. Depois de tudo que aconteceu, prevenir era melhor do que remediar. Muito longe de seu lar, há muitos quilômetros de distancia de seu povo, Lipe finalmente estava chegando ao ponto descrito pelo velho peixe, e ele estava ansioso. Feliz e ao mesmo tempo excitado, pelo que estava por vir. Sua ânsia era tão grande, que por um momento, ele pensou que tudo aquilo que o velho tinha lhe dito poderia ser mentira. Ele poderia muito bem ser um contador de estórias e seu coração ficou apertado, com a perspectiva de se decepcionar. Mesmo apreensivo, ele continuou nadando, mas agora, ele o fazia mais devagar.

As águas calmas e mansas do rio corriam lentamente rumo à sua foz, cumprindo fielmente sua rota, por vezes em linha reta, por vezes por linhas sinuosas, em meio à magnitude da floresta Amazônica, e Lipe, as estava acompanhando. Nas margens, em ambos os lados, a exuberante natureza da região mostrava todo seu encanto e sua magia. Em meio a um ambiente de paz e perfeita integração da fauna e da flora, os pássaros revoavam sobre as árvores, sobre a floresta e sobre o rio. Macacos pulavam de galho em galho, em seu alarde costumeiro. Ninhos espalhados pelas copas das arvores, davam aconchego e segurança aos pequenos filhotes recém nascidos. Em outros, futuras mamães chocavam cuidadosamente seus ovos. O som que predominava, era o do canto das aves, apenas perturbado pelo barulho dos macacos em plena euforia. Tudo parecia em completa harmonia. De repente, tudo que se pode ouvir foi o som pesado e tenso do silêncio da natureza anunciando perigo. Poucos minutos se passaram e um ruído surdo e estranho se fez sentir no ar, mas logo em seguida, novamente imperou o silêncio total. Em poucos instantes, o mesmo ruído ecoou de novo, mas desta vez, acompanhado de outros rumores desconhecidos, que para ouvidos despreparados, era como se eles fossem despedaçados no ar pelo vento, que soprava na floresta. Tanto os nativos quanto os animais da região, sabiam o estava por vir. Era a Pororoca que estava chegando no Araguari.

Como um gênio do mal que acaba de ser libertado da garrafa onde estava preso, o fenômeno causado pela atração simultânea da Terra, da Lua e do Sol se aproximava do lugar. O ruído em instantes se transformou num barulho enorme e como se fosse uma grande explosão, ecoou num rugido demoníaco que se propagou por todos os cantos. Carregando consigo, mil outros sons que se dissipavam ao longe, na imensidão da floresta sem fim. Uma onda espumante que mal se podia ver ao longe, de repente, como num passe de mágica, chegou a uma velocidade de 35 quilômetros por hora, e ela veio, transformando-se pelo caminho, num monstro, num demônio destruidor. Ela chegou com sua primeira onda afrontando, desafiando e destruindo a tranqüilidade das águas do rio, arrastando com ela, tudo que estivesse em seu caminho. Ela derrubava os barrancos das margens sem dó, nem compaixão. Aniquilava pequenas árvores e até mesmo arrancava pelas raízes outras delas, que tinham porte maior. A imensa onda, de um poder absolutamente devastador, estava passando pelo local e suas águas, já atingiam até mesmo os pequenos ninhos, que ficavam na copa de algumas arvores mais altas. A onda era de uma proporção descomunal e fazia questão de mostrar a todos, a quem quer que seja, que era ela quem comandava o show naqueles momentos de pura expressão do poder das forças da natureza.

Furiosa, a Pororoca continuava avançando rio acima, formando tubos beirando à perfeição para a alegria dos surfistas, que já tentavam dominar com suas pranchas as poderosas ondas, que agora, já se elevavam a 10 metros de largura, chegando até a 5 metros de altura, desfrutando momentos de aventura, e pura adrenalina. Em meio a uma delas, no meio das pranchas dos surfistas, lá estava ele. Lipe, o Boto cor de Rosa. Ele surfava as ondas ao lado do bicho homem, competindo palmo a palmo, pelas melhores ondas, e demonstrando sua perícia em manobras radicais, deslizando nelas, com perfeição. Para quem teve a chance de ver sua performance, sabe que foi algo de proporções nunca vistas para um animal como ele. Pegando cada onda que vinha, ele não precisava de prancha, nem equipamentos de segurança. Ele surfava apenas com aquilo que Deus lhe deu. Seu corpo e sua habilidade de nadar. Lipe, aquele jovem e intrépido boto cor de rosa, deslizava de barriga, de costas, de lado, e muitas vezes , ele conseguia pegar a crista de uma onda que se formava, e descia numa velocidade alucinante, deixando os surfistas boquiabertos, e alguns deles mais espertos, até conseguiam fazer manobras parecidas, observando ele surfar. Para ele, aquilo sim era vida. O que estava fazendo naquele instante, era por puro prazer de viver. Não fazia a menor diferença estar ou não dividindo aqueles momentos com os homens ou saber que alguém o estava observando. Também não fazia diferença se o estavam elogiando ou criticando.

Naqueles momentos, em meio à fúria da pororoca que avançava numa velocidade incrível, e sem parar, para ele, o tempo havia parado de correr. Ele vivia cada segundo intensamente, pois sendo um boto diferente dos outros, ao invés de querer passar o resto de sua vida nadando em águas mansas e rasas, tudo que ele mais queria, era realizar os seu sonho de viver intensamente e conhecer novas emoções. Monotonia e marasmo, eram palavras que ele nunca admitiu em seu vocabulário, na sua vida. Lipe decidiu que não iria envelhecer e morrer sem ter vivido plenamente, como não viveram os outros de sua espécie, tão ameaçada da extinção. Ele perseguiu seu sonho e mesmo tendo passado por grandes dificuldades para alcança-lo, um dia ele tinha certeza de que iria conseguir. Finalmente tinha chegado para ele, a hora de realiza-los. E ele conseguiu. Um sentimento de plenitude e uma sensação plena de realização pessoal, tomaram conta de seu ser. Do mais fundo de seu coração, ele soube que se tivesse ouvido os conselhos dos mais velhos de sua espécie, seguindo cegamente as regras impostas por eles e pelo sistema, ficando lá no lugar onde nasceu, executando as mesmas tarefas e movimentos pacatos e mecânicos pelo resto de sua vida, ele iria morrer, sem ter vivido.

Para Lipe, viver nunca significou ter que ser obrigado se render à vontade dos outros. Para ele, viver era se atrever a enfrentar o desconhecido. Era ter coragem de se arriscar e se atrever a descobrir, se aquilo que nos dizem a respeito das coisas, são realmente a verdade, ou se foram apenas invenções, criadas para nos cegar. Numa tentativa de nos manipular e impedir que possamos descobrir que a verdade, é bem diferente daquilo que nos dizem. Lipe nunca desistiu de sua determinação de perseguir o seu sonho, de correr atrás da realização daquilo que mais desejava na vida, mesmo sendo criticado sem dó nem perdão, ele nunca desistiu e ele conseguiu. Quando a ultima onda da pororoca acabou e as águas do rio voltaram a correr calmas, em direção à sua foz, ele se despediu de seus colegas surfistas, dando saltos para fora da água em volta de onde eles estavam com suas pranchas. Feliz por ter alcançado o seu objetivo, ele nadou rio acima, na direção de onde ficava o seu lar. Ele estava com saudades dos seus e mesmo sabendo que eles talvez nunca mudassem sua maneira de pensar ele iria tentar abrir os olhos de todos os componentes de seu grupo. Desde aquele dia, entre os meses de janeiro e abril, todos os anos, quando o espetáculo da pororoca se repetia, a presença de Lipe o boto cor de rosa era uma constante, e assim foi, ano, após ano, até que um dia, já velho, cansado e sem forças nem mesmo para nadar por curtas distancias, ele partiu para a viagem final, mas sua passagem para o outro lado não foi triste, muito pelo contrário. Lipe morreu feliz.

Em seu semblante, havia uma expressão de paz e contentamento, quando ele fechou os olhos pela ultima vez. Bem diferente de todos os outros de sua espécie que ele viu morrer. Todos eles eram botos tristes, que nunca souberam na vida o que era sorrir de verdade, sorrir de contentamento, de alegria, e partiram, com o mesmo vazio que carregaram nos olhos por toda a vida, executando sempre as mesmas tarefas e obedecendo cegamente às determinações impostas pelo grupo, e pelos mais velhos, acomodados na situação em que viveram. Renegaram seus próprios sentimentos, por toda uma existência, achando que assim é que era a maneira certa de viver. Eles se foram como se não tivessem vivido na vida. Partiram como se fossem apenas peças de um grande cenário, onde nunca tiveram a oportunidade de atuar efetivamente, no maior de todos os espetáculos. O espetáculo da vida. Mas Lipe não. Ele decidiu viver na expressão da palavra. Ele quis ter um papel importante, não apenas ser um objeto do cenário, no palco de sua existência.

O espetáculo em que ele atuou por toda a sua vida, desde que era muito jovem, foi um grande sucesso e permaneceu em cartaz para todo o sempre, nas mentes e nos corações daqueles surfistas, que maravilhados com sua presença ao lado deles, compartilharam com ele, as grandes manobras radicais que fizeram juntos.

Para eles, foram momentos mágicos, mas muito reais, vividos intensamente, nas cristas das ondas da pororoca, na foz do rio Araguari...


Autor: José Araújo

Fotografia: Boto cor de rosa do Amazonas

sábado, 29 de novembro de 2008

O RESGATE...





Eram quase cinco e meia da tarde. O sol, começando a se por, dava ao céu um tom dourado, com nuances azuis e tons avermelhados, iluminando de forma especial a fuselagem prateada do avião. Sem nuvens para atrapalhar a luz, do alto da torre de comando da base, era possível de se admirar ao longe, a beleza de um jato Gloster Meteor F-8 da FAB, taxiando em direção à pista de decolagem. O pequeno jato bimotor ao chegar ao inicio da pista, preparou-se para decolar e com seus motores potentes, em instantes estava percorrendo a pista negra de asfalto, ladeada por duas filas de lâmpadas gêmeas, que aos poucos, com o aumento da velocidade, se transformaram em duas faixas continuas de luz amarela e brilhante. Ao atingir a metade da pista, o pneu da frente deixou de tocar o solo e em mais alguns instantes, os dois pneus da parte traseira também deixaram o chão e o avião agora leve e sem o atrito com o solo, deu um salto para frente, ganhando velocidade de voo. O sargento Eduardo tinha uma missão. Ele teria que levar o jato da Base Aérea de Canoas até o porta aviões Minas Gerais que navegava pela costa sul do Brasil, em missão de treinamento. Aquele dia, 26 de março de 1.974, iria marcar a vida do piloto daquele jato, de uma forma muito especial. Minutos após a decolagem, o F-8 com seus dois motores Rolls-royce Derwent 8, já atingia sua velocidade máxima de 949 quilômetros por hora, em uma subida vertiginosa, na direção do infinito azul do firmamento.
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Naquela velocidade, em pouco tempo, ele iria alcançar o seu destino. Eduardo era um piloto jovem e para ele, não havia nada mais excitante do que voar. Aquilo estava em seu sangue porque seu pai havia sido também um piloto de aviões. Ele tinha paixão pela aeronáutica e sempre agradecia a Deus por ter lhe indicado a profissão certa. Sua vida era voar e quando pilotava um F-8, ele se realizava, pois o jato deslizava nos ares a uma velocidade absolutamente alucinante para a época no Brasil. A máquina possante que ele estava pilotando, era o orgulho da força aérea brasileira. Ele não conheceu seu pai, pois quando nasceu ele já havia morrido há alguns meses atrás. Desde pequeno, ele sempre perguntava à sua mãe porque todos os outros garotos tinham um pai e ele não. Sua mãe sempre lhe dizia que o seu pai tinha ido morar lá no céu. Os anos foram passando, ele foi crescendo, compreendendo melhor os fatos da vida, mas carregava em seu peito um enorme vazio. Ele sentia a ausência de seu pai, que ele aprendeu a admirar pelas coisas que lhe contavam a respeito dele. Muitas vezes, ele se sentia revoltado e mesmo tendo se tornado um homem adulto, guardava de seu velho uma mágoa profunda por ele o ter deixado, sem que ele pudesse ter tido a alegria de receber um abraço, ou um carinho dele. Inúmeras foram as noites em que ele sonhou que estava se encontrando com ele.
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Em seus sonhos, ele não conseguia visualizar a fisionomia de seu pai. Eram sonhos estranhos que o atormentavam de vez em quando, mas o tempo como sempre não para. A vida segue seu rumo e agora, ele era também um piloto de aviões, exatamente como fora seu pai. Já em voo, numa altitude de assustar a qualquer um que nunca voou na vida, tudo que ele podia ver à sua frente, dos lados e acima de sua cabeça era um intenso azul marinho da noite, todo salpicado de estrelas, que havia acabado de chegar. As estrelas do firmamento daquela noite de céu limpo, totalmente sem nuvens, proporcionavam um espetáculo à parte. A luz que vinha delas era tão intensa e pulsante, que pareciam fogos de artifício explodindo nos céus. Antes de iniciar o processo de decolagem, Eduardo havia solicitado à Torre de Controle da Base Aérea a autorização para decolar. Seu rádio até então estava perfeito. Havia alguns chiados, mas era comum e ele não se preocupou. Por um longo período, ele não percebeu nada de anormal, tanto que enquanto falava com o controlador de voo da Base, para informar que iria mudar de faixa, para sintonizar outra e não mais iriam manter contato, a comunicação tinha sido perfeita. Já sobre o oceano atlântico, a 44.500 pés de altura, o F-8 voava como um raio, envolto pela imensidão do azul noturno do céu.
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Enquanto Eduardo observava os instrumentos do painel de controle do avião, ele percebeu que a bússola estava agindo de uma forma incomum, e resolveu investigar melhor. Apesar do frio que estava sentindo, mesmo com seu uniforme especial e o capacete pressurizado, com o sistema de aquecimento funcionando a pleno vapor, Eduardo estava atento e preocupado com sua rota. Ele estava louco para poder aterrissar logo no Minas Gerais e reencontrar seus amigos, que já não via há uma semana. Quando a título de teste ele desviou o jato de sua rota numa guinada de 90 graus, a bússola endoidou de vez. Ela girava para todos os lados, imparcialmente, como se tivesse vontade própria e não quisesse apontar na direção certa. Eduardo ficou assustado, pois num voo noturno, um piloto sem uma bússola para lhe apontar a direção correta poderia entrar em maus lençóis. Quando quis fazer contato com o controle de voo do porta-aviões pelo rádio, ele percebeu que estava mudo. Como um piloto bem formado em inteligente, mudou a frequência de rádio, na esperança de que alguém o estivesse ouvindo, mas nada aconteceu.
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Foi em vão. Estava mais do que provado, que havia algum defeito também no sistema de rádio e naquele momento ele percebeu a seriedade de sua situação. No escuro da carlinga, ele podia ver os instrumentos iluminados e cada um deles, era muito importante para a segurança, mas a bússola e o rádio, eles sim, eram vitais. Eduardo agora já não via mais as luzes das cidades lá embaixo. Tudo que ele via era o oceano com sua cor negra causada pela escuridão da noite. Sem rádio e sem bússola, tudo que ele podia fazer era cuidar para manter o jato voando em uma altitude constante graças ao altímetro que ainda estava funcionando e rezar para que sua intuição o levasse na direção certa, pois ou ele encontrava o Minas Gerais e pousava nele, ou iria acabar caindo no mar, o que seria seu fim, afinal, para um jato como o F-8, seria uma pancada e tanto ao atingir as águas do oceano. Seus tanques de combustível só tinham o suficiente para voar por mais 30 minutos e após isto, seria seu fim, em algum lugar do atlântico, sem ninguém para testemunhar o que iria acontecer.
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Naqueles momentos de desespero, Eduardo pensou em seu pai. Em como ele teria sido mais feliz em sua vida se um dia ele tivesse tido a chance de abraça-lo, de sentir seu amor e sua proteção. Do fundo de seu coração, ele se arrependeu de ter um dia pensado que seu pai o havia abandonado no mundo para ir morar no céu. Naqueles instantes de tensão, ele estava voando a centenas de quilômetros por hora em direção a lugar nenhum. Em certo momento, ele resolveu perder altitude. Quem sabe voando mais baixo ele pudesse chamar a atenção de alguma estação de observação por radar e alguém viesse em seu socorro. Valia tentar de tudo, afinal ele estava perdido, sem saber que rumo tomar. Eduardo moveu o manche para frente, e seu jato iniciou a descida e em instantes ele logo estava voando bem baixo, num a velocidade muito menor. O tempo escorria como as areias da praia escorrem em nossas mãos. Com seu coração batendo rápido e sua mente já preparada para o pior por uns instantes, ele fechou os olhos e quando os abriu novamente, não pode acreditar do que viu. Voando ao seu lado, como que por milagre, havia um Ultramarine Spitfire!
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Ele balançou a cabeça e pensou consigo mesmo, que só poderia estar sonhando. Contudo, lá estava ele, bem ao seu lado, iluminado pela luz da lua e ele era um exemplar maravilhoso. Eduardo havia ouvido falar sobre ele na escola de aeronáutica e sabia que tinham sido as grandes estrelas das batalhas no ar na década de 40. Ele leu um artigo que dizia que eles eram maquinas maravilhosas e possantes, equipadas com motor Rolls-royce Merlin V-12, que lhes conferiam um poder de alcançar velocidades e altitudes absolutamente fantásticas para os padrões daquela época. Mas como poderia ser aquilo? Como um Ultramarine poderia estar ali, sobrevoando o atlântico na América do Sul, mais precisamente, tão perto da costa brasileira? Mesmo sem entender nada do que estava acontecendo, ele viu que o piloto do Spitfire acenava com a mão para que ele o seguisse. Por instantes, ele imaginou que aquele poderia ser um colecionador de aviões raros, sem experiência suficiente, num voo louco noite adentro. Seu medo e a certeza de que iria morrer, o fizeram se apegar ao único socorro que estava ao alcance e então, ele resolveu atender ao pedido do piloto. Juntos, lado a lado, ele obedecia aos comandos manuais do piloto do Ultramarine. Faltava muito pouco para acabar seu combustível, mas ele não tinha outra escolha senão tentar. Eduardo ficou surpreso quando pode avistar em meio à escuridão a mata atlântica lá embaixo. Não havia luzes, nenhum ponto de referencia que ele pudesse usar para tentar um pouso, mesmo que fosse forçado. O piloto do Spitfire, ainda voando ao seu lado, fez um aceno apontando para baixo. Ele queria que Eduardo iniciasse uma descida. Eduardo acenou que não. Ele achava que iria simplesmente se arrebentar numa queda em meio à floresta, se o fizesse. O piloto do outro avião insistiu com tanta veemência, que ele não resistiu e começou a descer. Sem compreender o porquê de estar atendendo a instruções de um piloto que ele não conhecia, que pilotava um avião que já não estava mais em operação ha décadas atrás, ele se rendeu e começou a atender a todos os comandos que recebia dele.
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De repente, lá embaixo, do meio do nada, duas faixas de luzes se acenderam bem à sua frente. Seu coração deu um pulo e sua mente se recusava a acreditar no que via. O desejo de viver, de poder pisar novamente em terra firme e rever sua velha mãe, o impulsionaram na direção delas. O Ultramarine Spitfire desceu com ele, até bem próximo da cabeceira da pista e de repente deu uma guinada para a direita, e desapareceu na escuridão. Em, segundos os pneus traseiros do F-8 da FAB tocaram o solo da pista e logo o pneu dianteiro também. Com uma velocidade ainda elevada para um pouso naquelas condições, ele percorreu a pista guiado unicamente pelas fileiras de luzes de suas margens, e o avião foi reduzindo gradativamente, até parar totalmente. O combustível de seu jato havia acabado exatamente enquanto ele percorria a pista no pouso. Transpirando, com a roupa encharcada grudando em seu corpo, ele abriu a carlinga do seu jato e tirou seu capacete. Quando olhou para baixo, bem à frente de seu aparelho, havia uma cratera enorme que poderia engolir seu avião, sem o menor problema, e o pneu dianteiro, isto sim o deixou mais impressionado naquele momento. Ele estava a poucos centímetros dela. Emocionado com a sorte que teve, ele passou a mão na testa e imaginou o que teria acontecido se depois de todo apuro que passou até encontrar ajuda, e pousar em algum lugar, seu avião tivesse sido engolido por aquele buraco. Com as pernas ainda bambas, ele viu dois faróis que se aproximavam de onde ele estava. Eram as luzes de um carro e quando ele chegou perto, Eduardo pode ver que era um velho Fusca.
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O carro parou ao lado de seu jato e dele desceu um velho senhor. Ele mal podia caminhar direito e mancava com uma das pernas. Eduardo desceu de seu avião e quando o homem se aproximou dele, perguntou como foi que tinha chegado até lá, pois há muitos anos ninguém mais pousava naquela pista abandonada no meio da mata. Eduardo explicou o que tinha acontecido e o velho sorriu, dizendo que ele só poderia ter sonhado. Ele não quis levar a discussão muito adiante e perguntou se havia algum telefone naquele lugar, para que ele pudesse pedir para que o viessem resgatar. O homem disse que tinha um em sua velha casa, mas ficava do outro lado da pista e era melhor irem em seu Fusca até lá. Agradecendo a ajuda, Eduardo perguntou se não seria muito incomodo, se ele pedisse para tomar um banho, pois ele estava se sentindo mal com suas roupas ainda encharcadas pelo suor. O velho balançou a cabeça em sinal afirmativo e lhe disse que seu nome era João, e que teria muito prazer em ajuda-lo no que fosse possível. No caminho, ele lhe contou que vivia só em sua casa, que há muitos anos atrás, aquela pista era muito movimentada, com pilotos chegando e saindo a todo o momento, mas após a desativação dela pela aeronáutica, tudo lá tinha ficado ao léo, para apodrecer aos poucos, até o fim. Eduardo, apesar do susto que havia passado, ficou curioso para saber como as luzes da pista estavam acesas quando ele pousou e não resistindo, perguntou ao velho.
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Com uma voz rouca e cansada, ele lhe disse que ele tinha sido o assistente de um dos melhores pilotos daquela base em sua época de ouro e que sabia como manejar tudo que havia lá, pelo menos, o que ainda estivesse funcionando. Disse ainda, que estava deitado em sua cama quando ouviu o ronco das turbinas de um avião e levantou-se o mais rápido que pode, para ver se conseguia ver algo nos céus. Não tendo conseguido ver nada e ainda ouvindo ao longe o barulho de um avião, ele resolveu acender as lâmpadas da pista, pois afinal, com toda a solidão em que vivia no meio do nada, não seria nada mau se alguém pousasse, lá só para variar. Quando o carro parou em frente à casa do velho homem, ele pode perceber que ela ainda estava bem cuidada e que seu proprietário, tinha o cuidado de manter tudo limpo e em condições de se viver dignamente. Ao entrar, eles foram para a sala de estar e o velho disse que iria pegar uma caneca com café bem quente, para aquecer um pouco. Nas paredes, havia fotos de muitos pilotos e aviões de todos os tipos, mas um deles lhe chamou a atenção. De pé, ao lado de um Spitfire, estava um homem jovem, alto, forte e com cabelos pretos. Ele usava uma jaqueta de couro, daquelas usadas pelos pilotos da época, e em sua cabeça, um capacete de couro, com um par de largos óculos usados pelos pilotos daquele tempo. Em seus lábios havia um sorriso alegre e confiante e aquela imagem de alguma forma, mexeu profundamente com seu coração. Aquele piloto não lhe era estranho. Pensando melhor, ele acabou por concluir que ele era o mesmo que pilotava o Ultramarine que o ajudou a chegar até lá, e pousar com segurança. Um feito e tanto, um milagre na verdade, considerando as condições precárias em que a pista se encontrava. Quando o velho retornou da cozinha com o café, Eduardo não pode esperar e perguntou se ele sabia quem era aquele piloto na fotografia, ao lado do Spitfire.
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O velho se aproximou da foto pendurada na parede, e com lágrimas nos olhos, disse a ele que aquele tinha sido seu chefe. Que ele era o melhor piloto que já havia conhecido na vida. Um homem com um coração maior do que ele mesmo. Um ser humano que vivia para ajudar o próximo e que morreu ha muitos anos atrás, quando tentava ajudar outro piloto em apuros, perdido em alto mar. O velho lhe contou que por uma destas coisas do destino, uma falha mecânica fez com que seu avião explodisse no ar e que a luz da explosão, chamou a atenção de outros aviões que voavam pela região, que acabaram por ajudar o piloto em perigo a pousar em segurança, naquela mesma base. Algo dentro de Eduardo pedia que ele perguntasse ao velho qual era o nome do valente piloto que havia morrido fazendo aquilo que mais gostava de fazer na vida, que era voar e ajudar aos seus semelhantes. Entre um gole de café e outro, ele ouvia o bom homem contar estórias fantásticas a respeito de seu amado comandante, e num momento, o velho pronunciou o nome do piloto, dizendo que o Coronel Augusto Maya tinha sido enviado pela FAB para treinamento na RAF e que sua paixão eram os Ultramarines Spitfire, que lá conheceu na escola de aeronáutica. Eduardo engasgou com o café ao ouvir o nome do piloto e o velho teve que lhe dar vários tapas nas costas dele, para que se recuperasse. Quando ele pode pronunciar alguma coisa, as poucas palavras que ele conseguiu pronunciar, com lágrimas correndo livremente pela sua face, foram:
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Ele era meu pai...
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Eduardo naquela noite, num momento de total desespero, quando se sentia mais só e desprotegido do que nunca, foi resgatado da morte certa pelo seu pai, que atendeu seu pedido inconsciente de socorro, no momento em que mais precisava de ajuda, e ele pilotava finalmente um Ultramarine Spitfire, o avião que ele mais admirou, em toda a sua vida.
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Autor: José Araújo
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Fotografia: Gloster Meteor F-8 da FAB, o 1º jato da Força Aérea Brasileira