A
história de Beatriz a principio pode parecer com a de muitos educadores e
educadoras, que escolheram a profissão por amor à cultura, pela determinação de
querer fazer deste Brasil um país melhor, mais justo, onde o ensino pudesse ser
considerado uma prioridade na vida dos cidadãos, mas na verdade, a história
dela, em determinado ponto de sua vida, teve uma mudança, que para muitos de
nós pode ser algo irreal, inimaginável para nossas mentes fechadas, cheias de
preconceitos, de conceitos pré- estipulados, que nos cegam, que nos impedem de
perceber, que além daquilo que podemos meramente ver com nossos olhos, existe
muito mais do que se possa imaginar. Desde pequena, ela já sabia o que queria
ser na vida, quando crescesse seria uma professora. Ela era uma aluna aplicada,
comportada, prestava atenção em todas as matérias e fazia seu dever de casa com
todo carinho. Sua preocupação, era de que sua professora achasse sempre seus
trabalhos e lições de casa bem feitos e que lhe desse boas notas. Beatriz estudou
muito. Esforçou-se o mais que pode para alcançar seu objetivo, que era o de
realizar o seu sonho de ser uma excelente professora, para que pudesse dar aos
seus alunos a melhor qualidade de ensino possível, pelo menos, no que
dependesse dela. Um dia ela se formou e com a maior alegria começou a lecionar.
Ela o fazia com sentimento, com emoção e isto fazia dela, uma professora muito
especial. Contudo, o tempo foi passando e Beatriz já lecionava há muitos anos.
Já havia dado aulas em várias escolas públicas e conhecia bem as necessidades
dos alunos, principalmente na periferia da cidade, onde ela trabalhou a maior
parte de sua vida. Mesmo morando longe das escolas para as quais ela foi
designada ao longo dos anos, com todo o cansaço de praticamente fazer uma
viagem todos os dias, para chegar até seus locais de trabalho, ela era
incansável. Nunca demonstrava sinais de estar exausta, fazia tudo que podia
para não levar até os alunos, mais problemas do que já havia em suas vidas
simples e com pais na maioria das vezes, sem poder aquisitivo o suficiente,
para lhes dar o básico, do básico. Mas a vida pessoal de uma professora, não é
de forma alguma diferente da vida de outras pessoas. Ela tem problemas pessoais
como todo mundo, tem fazes boas e difíceis na vida, é um ser humano como
qualquer outro, com sentimentos, emoções, carências e necessidades. Certo dia,
Beatriz começou a perceber que já não era a mesma, já não tinha mais a mesma
motivação que sempre a impulsionou a ensinar seus alunos o melhor que pudesse. Emocionalmente,
psicologicamente e fisicamente, ela estava sentindo-se esgotada. Era tanto, que
lecionando numa classe de adolescentes, onde muitos eram rebeldes e não a
respeitavam como deviam, ela passou a perder a paciência e a retribuir as
grosserias e ofensas que recebia de alguns deles. Ela já tinha se casado ha
muitos anos e sua vida familiar estava sendo prejudicada pelo fato de ter que
dar aulas em até três escolas diferentes, para que pudesse receber um salário
razoável.
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O
piso salarial de sua categoria era muito baixo, mal dava para pagar as custas
de manutenção de seu carro, que a levava de bairro a bairro, para cumprir seus
horários nas escolas onde lecionava. Juntando os problemas que ela tinha na
escola com os adolescentes, com seus problemas particulares que pareciam se
agravar dia a dia, já era comum ela dar um zero como nota a um aluno que não
fazia, ou entregava de acordo com o solicitado, os trabalhos que ela designava
à classe. Ela nem mesmo se preocupava em saber o porquê de um aluno não ter
feito total, ou parcialmente seu dever de casa. Apenas dava a nota e ponto
final. Muitas vezes, no meio de uma classe de alunos rebeldes na fase da
adolescência, é possível que haja alguns que estão no meio dos outros, por não
ter opção e estes, com uma professora que não consegue mais enxergar as
diferenças entre eles, por estar psicológica e emocionalmente abalada, são
prejudicados pelos erros dos outros. Beatriz sempre foi uma pessoa sensível,
sempre soube separar as coisas, mas estava num ponto que de vez em quando, ela
acreditava que iria enlouquecer. Como se não bastassem os alunos, cada um com
seus problemas, havia também os perigos causados pela própria sociedade e que
rondam as escolas, não importa se em locais privilegiados, ou na periferia onde
a violência tem maior incidência. As drogas sempre foram uma ameaça tanto aos
educadores, quanto às famílias dos alunos, mas principalmente aos jovens na
idade da adolescência, que nesta fase da vida podem ser influenciados facilmente,
se não houver colaboração tantos dos pais, quanto dos professores ou pessoas
responsáveis por eles. Lecionando sempre na periferia da cidade de São Paulo,
ela conheceu inúmeros alunos que se envolveram com as drogas. Alguns saíram
ilesos, ou quase, tendo sido recuperados e desviados do vício com a ajuda e o
apoio de todos que os rodeavam, mas outros afundaram-se na dependência química
e acabaram por chegar ao fundo do poço, de onde nunca mais saíram.
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Como
professora e mãe que era, ela sempre fez de tudo para ajudar a todos aqueles
que tinham se envolvido com as drogas. Fazia o que podia para conscientizar,
principalmente os pais de que quando se tem um problema como este em família, a
maior arma que se pode usar contra a dependência química, é a compreensão, pois
o diálogo com as pessoas nestas situações não pode de forma alguma ser
violento, agressivo, caso contrário, só pode piorar a situação. Mas agora,
naquela altura de sua vida, nada mais lhe despertava interesse, ela não se
incomodava com seus alunos. Se era guerra que queriam, era guerra que eles
iriam ter. Beatriz se tornou uma pessoa fria, agressiva, não tinha mais nenhum
sinal daquela que ela foi um dia. Tudo que havia em seu peito, era tristeza,
decepção e uma vontade imensa de largar tudo aquilo pelo qual ela lutou a vida
inteira e desaparecer sem deixar vestígios. Ela queria fugir dos problemas que
a afligiam, não queria mais sentir em seu peito o medo, a insegurança, a
decepção e revolta por achar que tinha falhado, tanto como ser humano, quanto
como profissional. Certo dia, em meio a uma crise existencial, ela resolveu
pedir uma semana de licença para descansar e tentar se recuperar. Fez as malas,
deixou os filhos com sua irmã, pegou um ônibus na rodoviária do Tiete e foi
para um hotel fazenda para relaxar e se recuperar, tanto mentalmente, quanto
emocionalmente. Chegando ao hotel, ela foi para seu quarto, tomou um banho
relaxante, vestiu roupas mais confortáveis e foi caminhar pelo jardim. Lá
haviam muitas plantas e flores, o lugar era um vale verdejante, em meio às
montanhas e a paisagem era linda, tanto no amanhecer, quanto no entardecer, era
possível apreciar o espetáculo de que o Sol é capaz de nos proporcionar. Dia a
dia, ela foi relaxando, parecia que o ar puro, o silencio, apenas ouvindo o
canto dos pássaros e os outros sons da natureza, estava operando milagres em
seu coração e em sua mente. No quarto dia, ela estava sentada no saguão do
hotel lendo um livro sobre Feng Shui, quando sua atenção foi desviada a um
velho senhor que estava sentado bem à sua frente.
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Ela
passou a fixar nele o seu olhar e quanto mais ela olhava para ele, mais ele
parecia diferente e então, ela começou a perceber que de alguma forma, ele
tinha um brilho inexplicável e concentrando sua atenção mais ainda nele, de
repente, ela não podia mais ver o homem, tudo que ela via em seu lugar, era um
campo de energia que parecia vibrar. Ele tinha se tornado transparente. Agora
ela podia ver além de seu corpo material, ela via a parede que estava
exatamente atrás dele. Beatriz ficou sem palavras. Não sabia o que pensar, e
então, ela pode perceber, que a parede também tinha o mesmo brilho que ela
tinha visto antes naquele homem, com o mesmo movimento de vibração. Não demorou
muito, a parede foi ficando transparente e aos poucos, desapareceu diante de
seus olhos, se juntando ao brilho inexplicável que emanava de tudo que estava à
sua frente. Naquele momento, através de tudo que racionalmente a gente chama de
real, ela estava vendo o jardim de inverno que estava do outro lado da parede e
mais adiante, aconteceu a mesma coisa com a outra parede que ficava no fundo do
jardim interno do hotel e assim sucessivamente, rumo ao infinito. Beatriz ficou
absolutamente atônita. Ela estava enxergando através de tudo que estava em sua frente
e naquele momento, ela sentiu como se fosse parte de tudo aquilo. Era como se
ela estivesse nadando num imenso oceano de luz e nunca sentiu seu corpo tão
leve em sua vida. Naquele momento ele parecia não existir. Ela tinha
consciência de sua existência, mas não conseguia determinar onde ela mesma
começava fisicamente e onde as outras coisas e pessoas terminavam.
Inexplicavelmente, para o que chamamos de racional, ela sentiu-se parte de toda
aquela energia, daquela luz. Ela compreendeu que nós e tudo que esta à nossa
volta, somos uma unidade, uma infinita massa de luz e energia, sem começo, e
sem fim.
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Que
nós todos, assim como tudo que conhecemos como sendo físico, como sendo real,
não pode existir, sem a existência de tudo que nos rodeia, num âmbito universal.
Não importa o quão diferentes, nós e todas as coisas possamos parecer aos olhos
da razão, é assim que somos, uma unidade infinita e que nesta unidade, esta a
resposta que humanidade procura a séculos sem encontrar. Nesta infinita força
universal formada por tudo e por todos, esta a resposta para o mistério da
criação. Passado algum tempo, ela foi aos poucos recuperando o sentido de
matéria física e quando voltou a pensar normalmente, sentiu uma profunda paz,
uma sensação de poder, de força, de fé e uma emoção imensa tomou conta de seu
coração. Ela renasceu naqueles momentos de imersão nos mistérios da vida e isto
trouxe de volta a Beatriz que quase havia morrido dentro dela. A experiência
foi tão grande e sua conscientização espiritual foi tão intensa, que na véspera
de sair do hotel, quando ela passeava pela manhã no jardim, ela se deteve em
frente a uma roseira e misteriosamente, fixou seu olhar numa linda rosa
vermelha. Ela ficou lá olhando a flor e nela, ela viu o mesmo brilho, o mesmo
campo de energia que parecia vibrar e de repente, ela sentiu como se ela mesma
estivesse sendo absorvida pela rosa, era como se as duas estivessem ocupando o
mesmo lugar no tempo e no espaço. Ela sentiu dentro de si mesma, o perfume
daquela flor. Foi mais um momento maravilhoso, de uma emoção indescritível com
palavras e em meio a tudo isto, ela perguntou à rosa, qual era o propósito
delas neste mundo e qual era o motivo de sua existência. A resposta veio de uma
forma emocionante, como se estivesse vindo de dentro dela mesma, mas ela
claramente sentiu que era a rosa respondendo, que elas existem neste mundo
físico, para lembrar àqueles que se esqueceram, que nós humanos, somos seres
maravilhosos, de uma beleza sem igual, tanto por dentro quanto por fora. Que
não importam nossas aparências e que elas, estão aqui como instrumentos
divinos, para nos lembrar desta beleza e que o perfume delas, de que tanto
gostamos, que nos trás um sentimento profundo de paz, faz com que a mensagem
delas possa ser ouvida e compreendida, por nosso eu interior.
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Os
dias de descanso acabaram. Beatriz voltou para casa e sua vida nunca mais foi a
mesma. Tudo mudou de uma forma, que contando ninguém acreditava. Seu
relacionamento com seu marido, com seus filhos, com toda a sua família e seus
parentes, tornou-se maravilhoso. Todos aqueles que a rodeavam passaram a
receber através de seus abraços, seus beijos e palavras de carinho, amor,
compreensão e principalmente de aceitação, os benefícios de sua conscientização
de fazer parte de uma energia universal. Nas escolas, ela se tornou mais
perceptiva, sabia como enxergar o verdadeiro brilho interior de cada aluno,
sabia que uma vez que todos somos um só, não há diferenças, que somos todos
iguais. Certa feita, ela que antes de sua viagem interior só dava broncas,
respondia à altura aos desaforos e ofensas dos jovens, se deteve diante de uma
situação difícil, com um de seus alunos. Ela havia dado como trabalho
individual, a criação de um texto, que poderia ser sobre qualquer objeto que
cada um deles escolhesse. Os alunos teriam uma semana para escrever no mínimo
quatro folhas sobre o objeto escolhido. Três dias depois, um deles a encontrou
no corredor e pediu para ser liberado de fazer seu trabalho. Beatriz que agora
já conhecia muito mais sobre seus alunos, do que nunca conheceu em toda a sua
carreira, sabia que Breno era um rapaz esforçado, pobre, mas de boa família e
além do mais, nunca deixou de entregar um trabalho sequer. Ela achou aquilo
muito estranho e com espírito iluminado, com muito tato, fez com que o rapaz
lhe dissesse o motivo pelo qual ele não queria ser obrigado a fazer o trabalho.
O jovem disse a ela que quando chegou em casa, comentou alegre com sua mãe
sobre o texto que deveria criar e pediu ajuda, para que ela sugerisse um objeto
para ser o tema de sua lição. Foi então que ela o levou até seu quarto e
chegando lá, abriu uma gaveta e tirou do fundo dela uma caixa e dela, um
relógio de bolso que havia sido de seu pai, dizendo que aquele seria o objeto
ideal para lhe servir como inspiração e neste momento, ele não pôde compreender
o porquê dela guardar um relógio que havia sido de seu pai, se já não mais
viviam juntos ha tanto tempo.
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Ele
disse com lágrimas nos olhos, que quando sua mãe colocou o relógio na palma de
sua mão, ele não pensou duas vezes, atirou o relógio na parede do quarto,
fazendo com o impacto, um buraco na pintura. Disse ainda que ele o havia
jogando com tanta força e tão alto, que ele caiu atrás do imenso guarda roupas
de sua mãe, mas ela nem sequer gritou com ele, nem ao menos ficou nervosa.
Apenas o olhou do mesmo jeito de sempre, com carinho e com amor. Breno disse
que saiu correndo do quarto, sem dizer mais nada. Bateu a porta atrás de si e
foi chorar em seu quarto, com a porta trancada. Beatriz ouviu tudo o que o
rapaz tinha a dizer, dando a ele toda a atenção que ele merecia, pois
visivelmente ele estava passando por maus momentos no âmbito emocional. Quando
ele acabou de falar, ela disse que ele não precisava escrever sobre aquele
relógio se ele não quisesse, mas de qualquer forma, o liberou de sua obrigação.
Quando ela chegou em casa, ligou para a mãe de Breno e contou a ela o que havia
ocorrido e do outro lado da linha, chorando, a mãe do adolescente agradeceu por
ela ter ligado contando tudo e que ela não sabia que seu filho guardava tanto
rancor por ela ter se separado de seu marido. Disse ainda que iria conversar
com Breno, com muito tato, de uma forma que ele não se sentisse sendo
repreendido pelo que fez com o relógio, muito menos que aumentasse nele, o
rancor pela separação de seus pais. Beatriz não disse, mas pensou consigo mesma
que aquela era uma mãe sábia, pois este era o melhor caminho para se chegar à
melhor solução. Na próxima aula, o rapaz entrou na classe de cabeça erguida,
com um sorriso simples e sincero em seus lábios e disse a ela que estava meio
cansado naquele dia, porque havia arrastado um móvel muito pesado em sua casa.
Ela não precisou adivinhar o que aconteceu. Sorriu de volta e pediu para que
todos se sentassem, a aula começou, e agora, suas aulas eram sempre calmas,
todos lhe davam toda a atenção. Tudo que ela trazia para discutir com seus
alunos, era como se fossem presentes dados por ela, não obrigações para serem
cumpridas. Suas aulas eram produtivas, prazerosas, tanto para ela, quanto para os
alunos. A aula terminou, todos entregaram suas lições de casa, ainda não era o
dia da entrega do trabalho de composição do texto sobre o objeto escolhido por
cada um, mas Breno aproximou-se da mesa de Beatriz, deu a ela uma folha de
papel dobrada e pediu para que lesse depois, quando ele já tivesse ido embora.
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Ela
sorriu para o rapaz, levantou-se de sua cadeira, passou a mão no cabelo do
rapaz num gesto de carinho, ele sorriu, virou-se, caminhou confiante e se foi,
sem olhar para trás. Ela não pôde esperar chegar em casa e curiosa para saber o
que ele havia escrito, Beatriz desdobrou a folha e nela haviam umas poucas
palavras, mas estas palavras, diziam tudo o que aconteceu depois da conversa
que ele teve com sua mãe:
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Composição
de texto
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Título:
Objetos.
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Objetos
são apenas objetos.
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Eles
não tem o poder de machucar, ou curar a ninguém.
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Somente
as pessoas podem fazer isto e todos nós, temos garantido o direito de escolher
ser machucados, ou curados, por aqueles que nos amam de verdade.
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Aluno:
Breno Teixeira
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Professora:
Beatriz
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Breno
esqueceu-se de colocar a classe, a série, mas não tinha importância. Ela estava
feliz com o resultado positivo de tudo que aconteceu com o rapaz, porque ele,
com sua sensibilidade e percepção aguçada do mundo e da vida, logo encontraria
como ela encontrou, uma rosa, que iria dizer a ele, da mesma forma que ela
ouviu daquela flor, qual é o propósito delas, e o porque de sua existência
neste mundo.
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E
assim, pensando no que aconteceu a ela ao fixar seus olhos naquele velho homem
ha muito tempo atrás, Beatriz juntou todos os trabalhos, contemplou a classe
vazia e do fundo de seu coração, ela desejou que as horas passassem depressa e
que o amanhã logo chegasse, para mais uma vez, receber aquele “Oi professora!”
de cada um de seus alunos, porque apesar dela ser a mestra deles na sala de
aula, ela aprendia com eles a cada dia e se sentia parte de todos eles, parte
de sua energia, de seu brilho, de sua luz, exatamente como Deus nos fez.
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Ela
saiu da sala, seguiu pelo corredor até a sala dos professores e pelo caminho,
encontrou muitos ex-alunos e no rosto de cada um deles, ela pode ver o futuro
de nossa nação, o futuro deste mundo, da humanidade, no seu mais amplo sentido.
Era como se emanasse de todos eles, aquele mesmo brilho que ela viu pela
primeira vez envolvendo aquele velho sentado em sua frente no saguão daquele
hotel, quando ela recebeu a maior e mais importante revelação, de toda a sua
vida.
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Autor:
José Araújo