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sábado, 26 de abril de 2008

UM PEDIDO ESPECIAL...


Filho, desde que sua mãe se foi deste mundo, quase não tive tempo para estar com você, para lhe dar atenção do jeito que voce precisa, mas hoje, cá estou eu, sentado ao seu lado em sua cama, vendo você dormir e a expressão angelical em seu rosto, faz meu coração bater mais forte, sinto um nó em minha garganta e duas lágrimas que brotam em meus olhos rolam livremente, enquanto pouso minha mão sobre a sua.

Há poucas horas atrás, eu estava sentado em minha mesa no escritório, sentindo uma tristeza enorme tomar conta de mim enquanto eu lia os jornais de hoje. Como sempre, eles estavam repletos de noticias ruins, tais como assaltos, estupros, roubos, assassinatos e não pude deixar de pensar em você e quando saí do trabalho, fui correndo te buscar na casa da Tia Emilia, ansioso para te olhar bem de perto, te trazer para casa e sentir que pelo menos com voce, estava tudo bem.

Pela manhã fui impaciente com você, enquanto se vestia demoradamente para que eu pudesse te levar para a casa de sua Tia para poder ir trabalhar, afinal eu já estava muito atrasado, não tinha tempo a perder. Disse que você deveria ser mais ágil, porque nada se consegue na vida arrastando-se lentamente, porque a vida passa muito depressa e se a gente bobear, acaba ficando para traz e que se voce demorasse mais, eu o deixaria em casa, sózinho e fechado o dia inteiro, para aprender a ser mais rápido, como em meu conceito de adulto, alguem deve ser.

Não contente em te dar um sermão por causa de sua lentidão, ainda briguei com você por ter deixado cair leite com chocolate na camiseta branca que voce tinha acabado de vestir e não satisfeito com isto, ainda tirei de você o resto de seu café da manhã, sem deixar voce terminar de se alimentar, lançando sobre voce, um olhar reprovador.

Lembro de ter balançado a cabeça com um sinal negativo, como se estivesse lhe dizendo que aquela não era a primeira vez. Você sorriu timidamente, se levantou da cadeira, trocou rapidamente de camiseta e foi me esperar no portão. No começo da noite, logo que chegamos em casa, tive que fazer algumas ligações de negócios e enquanto eu falava com um cliente, você fazia o maior estardalhaço, cantando alto e dançando como um louco na sala em meio aos seus brinquedos. Por causa disto, eu acabei por gritar com você muito nervoso, lhe pedindo para parar e respeitar o fato de eu estar falando ao telefone.

Voce pareceu não me ouvir, perdi o meu controle e gritei para que você fosse arrumar a bagunça que estava em seu quarto, antes que eu lhe desse algumas palmadas, que alias para mim, já eram mais do que merecidas. Agi com você como se eu fosse um General do exercito, apenas dando ordens e esperando o cumprimento delas por um soldado raso, sem nenhuma contestação.

Poucos tempo depois, após nosso jantar turbulento, com voce deixando comida cair fora do prato e eu brigando com voce por te-lo feito, eu estava assistindo o Jornal da Globo, prestando atenção às reportagens, quando você me interrompeu, perguntando se eu queria ver um desenho novo que você fez e eu respondi que não, que agora não era o momento para isto e então, você saiu da sala de mansinho e como sempre, eu não lhe dei atenção. Passados poucos minutos lá veio você de novo e desta vez, perguntou se eu não poderia ficar em sua cama até você dormir, porque você estava com receio de alguma coisa e eu fiquei mais bravo ainda, dizendo para voce ir dormir imediatamente e parar de me pertubar.

Eu disse a você que da próxima vez que me interrompesse, eu iria fazer você ficar de castigo para aprender a não perturbar as pessoas na hora errada e então você saiu da sala mais uma vez, sem dizer mais nada, de cabeça baixa, mas em poucos minutos, você estava de volta. Você entrou na sala lentamente, na ponta dos pés, chegou perto de mim e passou seus braços em volta do meu pescoço, dizendo que me amava, me deu um beijo carinhoso, me dizendo boa noite e do mesmo jeito que você apareceu, você se foi, quase sem eu perceber.

Depois disto, fiquei em silencio olhando a TV, mas na verdade eu nem estava vendo nada, meus pensamentos estavam em você meu filho e um remorso enorme tomou conta de mim. Tentei lembrar em que ponto do dia eu havia perdido o controle de mim mesmo, em que ponto da vida, eu me tornei tão insensível, ignorando suas necessidades, suas carências e às custas de que?

Você não fez nada demais para que eu pudesse ter agido assim, tudo que você queria, era ser uma criança normal como qualquer outra, ocupada na obrigação de crescer e aprender, assim tudo que você fez e que me deixou tão nervoso, era absolutamente normal. De repente, eu me vi perdido num mundo só de adultos, cheio de obrigações e responsabilidades, sem sentimentos, sem fé em Deus, na vida e pior, gastando toda minha energia e atenção com os problemas do dia a dia, sem nunca me lembrar de você.

Hoje meu filho, sem saber, você se tornou meu professor, quando num ímpeto voce me abraçou e eu sei que naquele momento, você só queria mesmo era me beijar para desejar uma boa noite, deixando claro que eu sou importante para você, de qualquer jeito, com qualquer humor e agora que te vejo dormindo profundamente em uma paz tão absoluta, não vejo a hora do amanhã chegar novamente, para que possamos fazer um recomeço em nossa relação, enquanto ainda é tempo para nós dois, mas principalmente para mim.

Você me mostrou hoje, que você precisa mesmo é de um pai verdadeiramente presente, de corpo, de alma e de coração, um pai que lhe dê atenção, que demonstre e diga o quanto você é importante para mim e isto de uma maneira simples, exatamente como você fez quando me abraçou e beijou para me desejar boa noite. Prometo que de hoje em diante meu filho, vou lhe dar sorrisos calorosos com mais freqüência, vou te abraçar mais vezes e sempre que necessário, vou lhe dizer palavras de consolo ou de encorajamento, além vir ao seu quarto todas as noites, para ler lindas estórias para voce dormir, pois tenho certeza de que elas vão embalar seus sonhos, até o amanhecer.

Eu vou rir quando você rir, vou chorar quando você chorar e vamos fazer muita coisa juntos. Juro filho, que vou me lembrar de que você não é um adulto e sim uma criança. Mas mais do que tudo, eu vou curtir ser o seu pai como nunca o fiz. Seu espírito maravilhoso e cheio de luz, tocou o meu coração quando me beijou, com todo seu amor puro e sincero, sem ressentimentos, mesmo após eu ter ficado bravo com voce, sem ter nenhuma razão.

Vim até aqui agora filho, para te beijar e te admirar enquanto você dorme meu pequeno mestre e eu te agradeço meu pequeno grande professor, pela lição de vida que aprendi recebendo hoje de você, um abraço e um beijo de boa noite.

Agora que já te disse o que sinto, mesmo sabendo que não esta me ouvindo, mas sei que pode sentir o calor de minhas mãos segurando as suas, porque elas falam mais do que minha voz e em silêncio, eu faço neste momento, uma prece, um pedido especial dirigido ao Mundo, pois amanhã será seu primeiro dia de aula, voce irá para sua primeira escola e espero que ele me entenda e me atenda, de todo coração...

Querido Mundo,

Meu filho começa na escola hoje, é seu primeiro dia de aula, tudo vai parecer estranho e diferente na vida dele. Sei que tudo vai ser novo e desconhecido por uns tempos e eu gostaria de lhe pedir para tratar dele com carinho. Ele tem sido o chefe do quintal dos fundos de nossa casa, tem sido o principe regente no reino de nosso lar, mas eu não tenho sido seu sudito devoto e dedicado como deveria, tenho sido apenas seu médico particular, a quem ele procura para a cura de alguns males do corpo, mas quando se trata dos males do coração e da alma, tenho falhado em inumeras ocasiões, exatamente quando ele mais precisava de mim, mas sobre isto, daqui em diante eu prometo mudar, pelo bem dele, pelo bem de nós dois.

Agora Mundo, ele vai estar em suas mãos e com a ida dele para a escola pela primeira vez, tudo em sua vida vai mudar. Pela manhã ele vai sair pela porta da frente, dizendo até logo e começará sua grande aventura, que certamente irá envolver alegrias, vitórias, felicidades, mas tambem guerras, tragédias e tristezas. Para que ele possa viver plenamente a sua vida, ele deverá ter coragem, amor e principalmente, muita fé no coração.
Então Mundo, eu gostaria que você o pegasse pela mão e o ensinasse o que ele tiver que aprender, mas ensine a ele da forma mais gentil que você puder. Ensine a ele que para cada canalha neste mundo, sempre há um herói, que para cada político corrupto, há sempre um líder dedicado e de bom coração.

Não se esqueça de dizer a ele também meu querido Mundo, que para cada inimigo, sempre há um amigo. Ensine a ele sobre o poder mágico dos livros e da leitura. Por favor, dê a ele, tempo para ponderar sobre os mistérios da existencia dos pássaros nos céus, das abelhas nas colméias, das flores nos campos, do amor no coração.

Diga a ele Mundo, que é muito mais honroso errar e assumir um erro, do que fingir que não tem nada com o assunto, jogando a culpa em alguém inocente. Faça com que ele saiba, que é preciso lutar com convicção pelos nossos ideais, pelo que acreditamos, mesmo que alguém diga que estamos errados, que somos malucos pela maneira que defendemos nosso ponto de vista, mas deixe claro a ele Mundo, que ele deve sempre defender e discutir seu ponto de vista, mas jamais pode querer obrigar as outras pessoas a pensar como ele, porque nenhum de nós, é dono da razão.

Mostre a ele, que ele precisa vender seu cérebro , suas idéias, sua inteligência e sua força, pelo mais altos preços, mas que ele nunca deve por a venda o seu coração... Diga a ele Mundo, como é a sensação, de se colocar uma concha no ouvido e ouvir o som do mar!

Ensine tudo isto e ele Mundo, mas em momento algum, passe a mão em sua cabeça, porque é somente com um bom fogo, que se forja e dá forma ao metal.

Sei que meu pedido a você, é grande demais, sei também que minha lista de recomendações é imensa e que outros itens vão ser incluídos durante a caminhada dele pela vida enquanto eu viver, mas veja o que você pode fazer por ele Mundo, afinal de contas, ele tem sido sempre, um bom menino!


Autor: Jose Araujo

Fotografo: Jose Araujo (Estação da Luz – SP - Acervo particular 2006)

domingo, 20 de abril de 2008

A TAMPINHA PREMIADA...




Sempre que eu passava em frente à garagem dos ônibus elétricos no Bairro do Braz, eu ficava encantado com suas dimensões!
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Era um galpão largo e muito alto, pois os Trólebus vinham para a garagem direto da rua, com seus dois mastros que deslizavam nos cabos de alta tensão, que eram colocados especificamente para eles, suspensos por cabos de aço sobre as ruas da cidade e naquela época, nem se imaginava que um dia teríamos metrô, ônibus articulado movido a gás natural, automóvel movido a eletricidade, veículos ecologicamente corretos, tudo isto, era só ficção.
Quando se falava de ir do meu Bairro, a Casa verde, para o centro da cidade, logo se ouvia alguém dizendo que iria pegar o 43, pois ele fazia final na Rua Cásper Libero, bem ao lado da Avenida Ipiranga, no coração de São Paulo e de lá, com mais uma condução, era possível chegar onde meu pai trabalhava, em questão de minutos.
Meu pai trabalhava na garagem há muitos anos, mais precisamente, por 35 longos anos de muito trabalho e pouco dinheiro para sustentar nossa família.
Sempre que nossa mãe ia para a “cidade”, como chamávamos o centro, eu queria ir também e levar alguns colegas para mostrar com todo orgulho, onde meu pai trabalhava, mas eram raras as vezes em que ela deixava e eu ficava imaginando, o porquê dela negar.
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Papai era mecânico de manutenção, o que sempre fez a vida toda, ele aprendeu o oficio com meu avô e não pode estudar muito, porque precisava trabalhar para ajudar seus pais.
Ele sempre ficava feliz quando a gente aparecia por lá, pois a administração, não achava ruim a presença dos filhos do “seu” João, um exemplo de bom empregado e sempre nos elogiavam a ele, dizendo que estávamos sendo bem criados e educados, mas só Deus e meu pai, sabiam às custas de que e os anos foram se passando, nós fomos crescendo como tinha que ser e a vida foi nos levando, o tempo passou e em determinado ponto, nem havíamos percebido e já tínhamos nos tornado adultos.
Papai já estava velho e cansado, mas não parou de trabalhar depois que se aposentou, porque com o dinheiro da aposentadoria, a gente ia acabar passando necessidades e sendo assim, ele não teve outra opção, senão, continuar a luta, pelo ganha pão.
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Meu irmão mais velho, já não ia mais conosco à garagem visitar nosso pai, mas eu sempre dava um jeitinho de ir vê-lo, porque sabia o quanto era importante a nossa presença em sua vida.
Lembro-me de certo dia, quando ainda éramos crianças, quando me juntei com mais dois amigos e fizemos uma “vaquinha” para arrumar o dinheiro da condução, pois mamãe dizia que não tínhamos nem o suficiente para pagar a conta de luz, quanto mais passear no centro da cidade, tentamos a manhã toda, mas o que conseguimos, não dava.
Meus padrinhos moravam perto de nossa casa e quando encontrei minha madrinha no caminho da padaria, eu estava triste, de cabeça baixa e ela logo quis saber o que estava me aborrecendo, contei a ela e sem pensar duas vezes, ela abriu sua bolsa e me deu o que faltava, para pagar as passagens de ida e de volta.
Radiante, corri ao encontro de meus amigos e lá fomos nós, orgulhosos de pegar o 43, pois ele era o que havia de mais moderno na época e em pouco tempo estaríamos no centro e de lá, logo chegaríamos à Av. Celso Garcia, onde ficava a garagem dos ônibus elétricos, que existe ate hoje.
Quando lá chegamos, um sorriso enorme tomou conta do rosto de meu pai, ele me abraçou, me beijou, cumprimentou meus amigos e enquanto ele trabalhava, a gente ficava admirando as dimensões do Galpão.
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Depois de algum tempo, ficamos entediados, queríamos fazer algo diferente e foi então que lembrei que na calçada, em frente à garagem, havia um velhinho que vendia refrigerantes, doces e balas, mas o que me fez ficar mais excitado com a ideia, foi que só me faltavam duas tampinhas premiadas, para eu trocar por uma linda miniatura de engradado de garrafas, igualzinha ao verdadeiro e com ele, eu iria ganhar doze mini garrafinhas de refrigerante, o que completaria, minha tão esperada coleção.
Fui correndo até onde meu pai estava e perguntei se ele não poderia arrumar o dinheiro, para que cada um de nós pudesse comprar uma garrafa de refrigerante, pois estávamos com muita sede.
Percebi certa hesitação na voz de meu pai, mas ele disse que sim, que estava tudo bem, tirou do fundo de seu bolso umas notas amassadas, que eram o suficiente para o que a gente queria.
Corremos para a carrocinha do velhinho e perguntamos se ele tinha o refrigerante da promoção, aquele que quando você acha uma tampinha marcada com uma estrela dentro, você ganha pontos para trocar por brindes, quando tiver pontos o suficiente.
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Ele riu como se todos os meninos quisessem a mesma coisa e disse que iria comprar muito mais, pois estava vendendo bem por causa da promoção.
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Quando ele abriu as garrafas para a gente, dei um pulo de emoção, pois na minha tampinha tinha uma estrela e eu estava apenas a duas estrelas para poder trocar pelo brinde que tanto queria.
Um dos meus amigos pegou sua tampinha na mão, tirou a camada fina de cortiça que havia nela, olhou para mim e com um sorriso largo e me disse que eu já havia conseguido o que queria e assim foi com o outro, pois num dia de muita sorte, nós três fomos premiados, com a estrela no fundo da tampinha.
Mais alegre que nunca, voltei para a minha casa na Casa Verde, juntei todas as minhas tampinhas e fui voando ao posto de troca que tinha na padaria do “seu” Manoel, troquei pelo meu brinde e ainda sobrou uma delas, que eu guardei em meu bolso, para resolver depois o que fazer com ela.
Cheguei em casa feliz da vida, coloquei a minha preciosa miniatura de engradado, cheio de garrafinhas em cima do meu criado mudo e de tão cansado, me deitei na cama e acabei por pegar no sono.
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Quando acordei já era noite, ouvi vozes na cozinha e minha mãe falando sobre mim e ela parecia nervosa e muito brava com meu pai, dizendo que ele apenas deveria ter dito a mim que não tinha dinheiro suficiente para gastar com bobagens e que eu entenderia, afinal de contas, havia outras prioridades, muito mais importantes para todos nós e elas custavam dinheiro, um dinheiro que a gente não tinha.
Meu pai como sempre, apenas balançou seus ombros, baixou a cabeça e foi para seu quarto, enquanto eu procurava me esconder, para que eles não soubessem que eu havia ouvido a conversa toda.
Discretamente fui para meu quarto, o qual eu dividia com meu irmão, sentei na cama já esvaziando meus bolsos e a tampinha com a estrela, foi a primeira coisa que eu peguei e naquele momento, eu percebi o grande sacrifício que meu pai havia feito por mim naquela tarde e naquele mesmo dia, eu fiz uma promessa solene, de que algum dia eu iria retribuir de alguma forma tudo que ele fazia por mim, que eu iria dizer ao meu pai que eu sempre soube do sacrifício que ele fez naquele dia e em muitos outros, que haviam surgido muitos claros em minha memória e eu tinha só, sete anos de idade.
Nos próximos vinte anos, de tanto trabalhar sem cansar para nos criar, nos sustentando e educando da melhor maneira que ele podia, seu físico não aguentou o baque e ele teve cinco ataques do coração e acabou por não poder mais trabalhar, tendo que ficar em casa, cuidando da saúde e de seu bem estar.
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Hoje, eu sei que meu pai sempre teve muitos sonhos que não pode realizar, porque sua prioridade éramos nós, sua família, mas que eles ainda viviam em seu coração, mesmo sem ter mais esperança, de um dia poder realizar algum.
Eu e meu irmão já estávamos bem empregados, com bons cargos e já ajudávamos nossos pais o melhor que podíamos e um dia papai ligou no escritório onde eu trabalhava, perguntando seu eu não poderia leva-lo à consulta médica, depois ele voltaria sozinho, pois precisava caminhar um pouco, para fazer exercícios.
Peguei o carro no estacionamento do prédio onde trabalhava e em questão de minutos estávamos no consultório médico e eu disse a ele que não iria embora de jeito nenhum, que ficaria lá esperando por ele, até a consulta terminar e assim eu fiz.
Quando ele saiu da sala do medico, não havia cor em seu rosto, ele estava pálido, como se algo tivesse tirado de seu corpo todo o sangue que tinha e com uma voz engasgada na garganta, apenas disse para irmos embora, já caminhando na minha frente em direção à rua e eu atrás dele, perguntando o que tinha acontecido e ele resmungando, que não era nada.
Do outro lado da calçada, estava estacionada uma caminhonete, absolutamente linda, uma dessas maquinas que são Tunadas e de cacos velhos, se tornam tesouros de grande valor, pelo menos para aqueles que sabem apreciar um bom carro e papai sempre foi assim, amava carros, mesmo sem nunca ter tido a chance de possuir um.
Ainda sem falar mais nada, ele atravessou para o outro lado da rua e se aproximou do veículo, deslizando sua mão sobre ele e naquele momento, eu senti como se ele fosse um artista plástico, um gênio da arte, um escultor apreciando sua bela criação, com toda a devoção.
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Justiça seja feita, ela era mesmo uma beleza!
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Quando eu a admirei de perto também, papai me disse que um dia, ele ainda iria ter uma igual àquela.
Nós dois sorrimos, aquele era seu sonho, mas como sempre, inatingível para ele.
Eu estava indo bem como gerente na empresa em que trabalhava, assim como meu irmão também na dele e nós dois nos oferecemos para comprar a caminhonete de seus sonhos, mas ele recusou, na cabeça dele, se ele não pudesse pagar com seu próprio dinheiro, não seria dele.
Na outra semana, eu o levei novamente ao médico e quando ele saiu da consulta, foi como se tivesse recebido a noticia da morte de alguém, mas na verdade, ele havia recebido a noticia de sua própria morte, em bem pouco tempo.
Eu o apoiei até o carro, pois ele estava cambaleante, fiz com que se sentasse direito no banco do passageiro, entrei no carro e ele começou a me contar que em breve, iria nos deixar e que não havia nenhuma esperança para ele, nem adiantaria tentar nenhum outro tratamento.
Fiquei em estado de choque, enquanto ouvia e ele me dizer com lágrimas nos olhos, que a única alegria que ele iria levar desta vida, era o fato de estar orgulhoso de mim e de meu irmão, pois havíamos nos tornado homens de bem, honestos, tementes a Deus e respeitando o próximo, em todas as situações.
Não consegui falar nada, apenas o abracei muito, beijando seu rosto cansado e marcado pelo tempo, ouvindo ele me pedir para jurar, que nunca iria contar nada a ninguém sobre sua morte tão próxima e iminente, pois ele não queria fazer mamãe sofrer por antecipação e eu compreendi, porque sempre soube que não havia no mundo inteiro, um homem mais apaixonado por sua mulher, do que meu velho pai.
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No caminho de casa, passamos em frente a uma agencia de veículos e lá estava ela, a caminhonete de seus sonhos, estacionada no pátio da concessionária e com um cartaz de “Vende-se” colado nela.
Naqueles dias, eu e minha esposa estávamos pensando em trocar de carro e meu pai sabia disto e então perguntei a ele, se não faria mal a gente entrar na agencia e dar uma olhada nos veículos.
Papai concordou e enquanto eu estava olhando outros carros, vi que ele foi direto para onde estava estacionada a caminhonete e lá ele ficou.
A maneira que ele a admirava, trouxe lágrimas aos meus olhos e relembrei de tudo que ele fez por mim e por meu irmão, pensei em todos os sonhos que ele deixou de realizar por nós dois e veio à minha mente, a imagem daquele dia, lá na garagem do 43, quando eu pedi o dinheiro a ele para comprar os refrigerantes, sem ter noção do que estava pedindo.
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Fui até o vendedor e perguntei se poderíamos fazer um test drive na caminhonete e ele disse que não haveria problema algum e quando chamei meu pai dizendo o que íamos fazer, seus olhos se iluminaram, parecia que ele tinha recebido mais algum tempo de vida.
Saímos da agencia, ele no volante, falando alegre sobre a potencia e beleza do veiculo, pois naqueles momentos, ele havia se esquecido de sua doença, da tristeza de saber que iria nos deixar em breve e estava apenas curtindo, um tão sonhado momento, no volante daquela caminhonete.
Rodamos bastante e voltamos para devolvê-la na agencia e quando ele desceu dela, passou a mão sobre o capo do motor, abaixou-se e a beijou, como se beija uma criancinha, mal pude conter a emoção que invadiu meu coração.
Disse ao vendedor que iríamos pensar e retornaríamos depois e assim, fomos para casa, onde eu o deixei.
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Voltei à agencia, fiz algumas negociações com o vendedor, combinei alguns detalhes com ele e fui para o trabalho, dizendo que voltava no dia seguinte.
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Pela manhã passei na casa de meus pais, perguntei ao papai, se poderia me ajudar a dar uma olhada num novo modelo que havia chegado à agencia e se ele achasse que valia a pena, eu o compraria para minha mulher, dando o velho que ela tinha, como parte do pagamento.
Ele, feliz por eu confiar tanto nele, a ponto de opinar na compra de um carro novo para minha mulher, levantou do sofá onde estava deitado e foi se arrumar para sair.
Quanto chegamos à agencia, a caminhonete estava parada no mesmo lugar, linda, perfeita, mas nela já havia um cartaz dizendo... ”Vendida”.
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Naquele instante, vi em seu rosto a mesma expressão de desapontamento, que ele deve ter sentido muitas e muitas vezes em sua vida, quando não conseguia algo que queria muito porque não conseguia juntar dinheiro o suficiente, nem mesmo o bastante para nos manter direito, quanto mais para comprar algo que ele queria.
Estacionei do lado de fora da agencia e pedi a papai para que ele fosse até o vendedor que nos atendeu antes, para lhe dizer que eu iria deixar meu carro num lava-rapido nas redondezas e logo estaria lá, pois havia marcado para as dez horas e já eram dez e cinco da manhã.
Papai desceu do meu carro e entrou caminhando devagar na agencia e eu estacionei próximo da esquina e voltei a pé.
Parei do outro lado da rua e pude ver através dos enormes vidros da concessionária, quando o vendedor caminhou com meu pai até onde estava parada a caminhonete, fazendo com que ele sentasse no banco do motorista, dando a ele as chaves do veiculo e apontando em minha direção, dizendo a papai que aquele, era um presente de mim para ele e que era para ser um segredo, só entre nós dois.
Papai colocou a cabeça para fora da janela, olhou em minha direção, nossos olhos se encontraram e sorrimos um para o outro, não foram preciso palavras, ele compreendeu e aceitou o presente que eu lhe dei, de todo coração.
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Fui pegar meu carro e quando papai chegou dirigindo sua maquina possante, eu já estava na porta de sua casa esperando.
Ele desceu da caminhonete, veio em minha direção, me abraçou como nunca em toda a minha vida e eu disse a ele que o amava muito, mas muito mais do que ele poderia imaginar, lembrando a ele de nosso segredo.
Saímos os dois na caminhonete para dar uma volta pelo bairro e enquanto nós conversávamos animadamente, papai disse que havia compreendido o que fiz por ele, lhe dando o veiculo de presente, mas não entendia o porquê de eu ter trocado a bola da alavanca do cambio, por uma tão diferente da que estava nela.
A bola da alavanca do cambio da caminhonete original era preta, da cor do estofamento, mas a que eu mandei fazer, era de acrílico transparente e dentro dela, mandei colocar uma tampinha de garrafa, mas não uma tampinha qualquer, era aquela premiada, com uma estrela dentro dela, a mesma que eu ganhei e sobrou naquele dia, há muitos anos atrás, quando papai fez por mim, mais um sacrifício em sua vida.
Tinha chegado a hora e o momento de eu retribuir seu carinho, seu amor e fazê-lo feliz, mesmo que por pouco tempo, mas o nosso segredo, sobre a sua verdadeira situação de saúde, não viveria sozinho em meu coração, havia outro que estava guardado lá, desde muito tempo atrás, o mesmo que eu descobri com sete anos de idade, quando ouvi a conversa entre meus pais, sobre o dinheiro gasto na compra dos refrigerantes e este, nem mesmo a papai, eu iria contar...
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Ele faleceu seis meses depois e sua passagem foi quando ele estava dormindo, num final de tarde e ele estava com um sorriso nos lábios e uma expressão de paz em seu rosto quando partiu, pouco depois de ter limpado e encerado sua caminhonete, seu único sonho de consumo realizado em sua vida sofrida e quem teve alegria de guardar esta lembrança fui eu, porque nosso segredo e o meu, ficaram aqui para sempre, bem dentro de mim, desde que ele se foi.
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Hoje, aos 85 anos, eu, Jorge Eduardo, o filho do "seu" João, não tenho mais a caminhonete que foi de papai, pois eu a passei para meu filho mais velho, que por sua vez, trocou a bola da alavanca de acrílico com a tampinha dentro, pela original, que na opinião dele, combinava mais com a cor dos bancos e eu não discuti, aceitei a vontade dele, além do mais, já não enxergo direito, nem ao menos consigo caminhar sem ajuda, mas de vez em quando, eu fecho os olhos e vejo papai, ele esta num lugar lindo, cheio de paz e ele me diz para eu não me preocupar, pois ele vai estar sempre lá, esperando o dia da minha passagem para o outro lado da vida, de braços abertos, para me abraçar e me beijar e depois, me apresentar orgulhoso aos novos amigos, que ele fez lá no céu.
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Nos momentos em que isto acontece, eu ouço sua voz, ele fala com aquela sua maneira gentil de sempre, com seu jeito único, que me transmitiu amor e confiança na vida, desde que eu era um bebê e ele me diz, que além de estar com saudades de me abraçar e me beijar, ele tem um presente para me dar e quando eu pergunto a ele o que é, ele me responde que é uma tampinha de garrafa premiada, com uma estrela dentro dela e que esta colocada numa bola de acrílico, que ele encontrou jogada numa lata de lixo e, eu sei, dentro de meu coração, que ela é a mesma que eu encontrei, enquanto esvaziava meu bolso quando era pequeno, depois de ouvir a conversa entre mamãe e papai, a mesma que me revelou um segredo, que até então eu não imaginava e que guardei em meu peito, pelo resto da minha vida.
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Autor: José Araújo


Fotografia: José Araújo (acervo particular 2006)

domingo, 13 de abril de 2008

O CAÇADOR DE CONCHAS...


Naquele final de semana, eu havia descido para o litoral na sexta feira após o trabalho, precisava dar uma olhada na casa, antes do pessoal descer no sábado, eles iriam juntar-se a mim num tão esperado final de semana na praia, para bater papo, trocar idéias ou apenas jogar conversa fora, mas o importante é que estaríamos todos juntos, mesmo que só por dois dias.

Aproveitei minha solidão naquela noite de sexta para sábado, para relaxar e dormir ao som das ondas do mar quebrando-se nas rochas, fui deitar-me cedo, pois pela manha eu queria mesmo era fazer algo que sempre gostei, ou seja, caçar conchas nas areias da praia, enquanto a maré ainda esta baixa, pois é a melhor hora para encontra-las.

Eram seis da manhã quando me levantei, tomei um banho rápido, tomei um pouco de leite e sai de casa rumo à orla marítima, para me dar a um luxo tão raro, de estar presente e fazendo parte da natureza exuberante, de um lugar que tanto amo e que sempre tive tão pouco, ou quase nenhum tempo para estar ao lado dela, depois que me tornei um adulto.

A casa era bem em frente ao mar e em poucos passos, eu já estava pisando na areia, sentindo o milagre da natureza envolver meu corpo, meus sentidos, meu ser...

A praia estava deserta e pude caminhar por um longo tempo, caçando minhas conchas, sem me preocupar com nada, apenas vivendo aquele momento, que me dava um prazer enorme e que sempre me fez muito bem.

Havia já achado várias conchas, algumas pequenas e outras grandes, de várias formas, de várias cores e quando me dei por conta, já eram quase dez horas da manhã, o dia estava agradável e a praia já tinha algumas pessoas, aproveitando o horário em que o sol é mais ameno.

Peguei minhas conchas e já ia me preparando para voltar para casa, quando vi não muito longe de onde eu estava, um casal sob um guarda sol e uma criança sentada um pouco distante deles, debaixo de outro e ela, de uma forma que não sei explicar até hoje, chamou minha atenção.

Era uma menina, devia ter uns cinco ou seis anos, pele branca como leite, olhos de um azul celestial e cabelos louros, encaracolados, exatamente como um anjo, sim, ela me lembrou um anjo e eu fiquei observando-a de longe, enquanto ela sorria, agitando a cabeça e balançando seus cachos dourados, acariciados pela brisa do oceano.

Não pude resistir e me aproximei, eu sempre fui apaixonado por crianças e naquela época, eu ainda era solteiro, somente tinha sonhos de ser pai algum dia, esperava receber de Deus a dádiva de poder ajudar a conceber uma vida, tendo a felicidade de poder amar e cuidar dela, mais do que de mim mesmo, educando e preparando-a para seguir seu próprio caminho, um ser humano confiante em seus passos, em si mesmo, mas sem nunca esquecer, quem eu fui um dia em sua vida, mas eu sempre soube, que para que isto um dia pudesse se tornar realidade, só iria depender de mim, de meu comportamento perante a Deus e à vida.

Ao chegar perto do casal, pude perceber que eles estavam com um olhar triste, observando o mar com olhares distantes, vi que estavam calados, como se estivessem fazendo alguma prece, ou simplesmente meditando, não foi possível deixar de pensar, por que não estavam felizes e sorridentes, esbanjando alegria, como aquele anjo lindo, cheio de luz, sentado ao lado deles, sorrindo, com uma expressão de paz em seu rosto, que trouxe lágrimas aos meus olhos.

Acanhado, cumprimentei o casal e perguntei se poderia falar com a menina, pois queria dar a ela uma das lindas conchas que havia encontrado, eles agradeceram a gentileza, permitindo que eu o fizesse e foi então que eu descobri, porque estavam tão distantes, quando me aproximei.

A mãe da menina olhou-me bem dentro dos olhos e disse que eu poderia falar com ela, mas infelizmente, ela não poderia me ver, pois era cega, desde que nasceu.

Uma dor profunda tomou conta de meu coração, por saber que aquele anjo, tão lindo e cheio de vida, não podia ver a beleza do mar e das conchas que eu havia encontrado, que ela nunca viu, nem iria ver, a natureza em todo seu esplendor.

Perguntei ao casal, se não havia nenhuma esperança de cura para ela e me disseram que infelizmente, os médicos haviam descartado esta hipótese, ha mais de um ano atrás.

Entristecido, dirigi-me para onde ela estava sentada e não pude compreender, o motivo do sorriso em seu rosto, um sorriso permanente, como se ela fosse a mais feliz de todas as pessoas neste mundo e de vez em quando, ela balançava a cabeça, fazendo sinais, como se estivesse falando com alguém.

Sentei-me ao lado dela e instantaneamente, ela se virou em minha direção, fixando em mim aqueles olhos lindos, como se por um milagre estivesse me vendo e então ela falou:

”Oi!”.

Não posso descrever a emoção, nem mesmo o que realmente eu senti naquele momento, pois foi incrível a forma como ela percebeu minha presença e virou-se, exatamente em minha direção.

Com voz embargada, eu respondi a ela e perguntei...

“Oi!”

Qual é seu nome menina linda?”

Em sua resposta, veio o que de alguma forma mágica e misteriosa, meu coração já sabia:

”Meu nome é Angelita, e o seu?”.

Meu coração acelerou, senti um nó em minha garganta e quando finalmente consegui responder, disse a ela que meu nome era Pedro e nós conversamos bastante, foi impressionante ver a maneira como ela movia os olhos e cabeça em direção aos sons, como se estivesse vendo tudo, como qualquer pessoa normal.

Ela pagava punhados de areia com suas mãozinhas e enquanto falava, deixava escorrer por entre seus dedinhos, sorrindo e falando sobre os sons da natureza e sobre a maneira como ela imaginava que as coisas eram vistas, por aqueles que tinham recebido de Deus, a graça, de poder enxergar.

Fiquei encantado com aquele anjo, tão lindo, tão especial, que não tinha asas para poder voar, mas não havia perdido a alegria de viver, de sentir as coisas e ver o mundo à sua maneira, ela havia aprendido em sua imaginação a voar livre, leve, solta, de uma maneira só sua e que a fazia feliz, tão feliz, quanto qualquer um de nós que tem o poder da visão pode ser, se assim o escolher.

Peguei a concha mais linda que havia encontrado e dei a ela, descrevendo como era seu formato, suas cores e dizendo que ela tinha um poder mágico, que poderia guardar dentro dela, toda a imensidão do oceano e para provar isto, era só colocar-la junto ao ouvido, que se poderia ouvir o som do mar.

Angelita pegou a concha com as duas mãozinhas, de uma forma firme, mas delicada, sentiu seu formato com a ponta de seus dedinhos e eu a ajudei a coloca-la perto de seu ouvido, para que ela pudesse ouvir, o som do mar.

Ela pressionou a concha em seu ouvido e ficou ouvindo atentamente e aos poucos, um sorriso mais largo ainda foi tomando conta de seu rosto, ela não se conteve e perguntou:

”Tio, o mar esta mesmo dentro dela?”.

Aquela pergunta me deixou momentaneamente sem resposta, mas aos poucos, me recuperei da forte emoção que estava sentindo ao lado daquele anjo e disse a ela com voz calma e confiante, que quando o papai do Céu fez o mar, as ondas e as areias, ele fez as conchas, que teriam a grande responsabilidade de proteger o mar e por isto, tinham o poder de carrega-lo dentro delas, pois se um dia, algo colocasse a existência dele em perigo, elas o esconderiam dentro de si mesmas e com isto, mesmo que ele deixasse de estar presente fisicamente na vida de algumas pessoas, elas poderiam ouvi-lo dentro delas, onde quer que estivessem, para matar as saudades e alegrar seus corações.

Ela sorria, segurando a concha encostada em seu ouvido e seus lindos olhos azuis, pareciam refletir a luz do sol, eles brilhavam de alegria e eu pude naquele momento, sentir que a luz divina, brilha mesmo para aqueles que não podem enxergar como nós e que muitas vezes, aqueles que podem ver, não a enxergam, como os pais de Angelita, pois já não existe mais fé em seus corações e acabam por viver, na mais completa escuridão.

Angelita foi um anjo, que cruzou o caminho de Pedro, um caçador de conchas e narrador desta estória, para permanecer em seu coração pelo resto de sua vida e ela, com toda a sua luz, ensinou a ele que tudo pode ser, que tudo pode acontecer, quando se tem dentro de si, a fé em Deus e o amor pela vida, que não somente é possível enxergar sem ter a faculdade da visão, desde que a gente deseje aquilo que queremos, de todo coração e aquele anjo, em forma de menina, tinha dentro de si, um sentimento imenso chamado amor e no caso daquela criança, tão cheia de luz, era direcionado a uma única coisa, a viver sua vida, a única que ela tinha, da melhor maneira possivel, mesmo tendo sido privada de ver as coisas como nós as vemos, desde que nasceu.

Aquela criança, tinha algo dentro dela, que falta a muitos de nós, que reclamamos o tempo todo, de quase tudo na vida, sem motivos, sem sermos deficientes fisicamente, em nenhum sentido, ela tinha um amor incondicional pela vida, que era sincero, verdadeiro e era isto que a fazia feliz que lhe conferia o poder mágico, de ser capaz de enxergar coisas que muitos de nós, nem sequer chegamos a ver, por toda uma existência, mesmo tendo recebido de Deus, a dádiva da visão.


Autor: Jose Araujo

Fotografo: Jose Araujo (Shells - Acervo particular 2006)

sábado, 5 de abril de 2008

A PERSONAGEM...





Cai a tarde na capital paulista, o sol se esconde ao longe por detrás no Pico do Jaraguá, em meio a uma cortina de fumaça que tenta, mas não consegue esmaecer o encanto, de um lindo entardecer.
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Na cobertura de um dos arranha céus na região da Avenida Paulista, a mais paulista de todas as avenidas, bem próximo à estação Metro Consolação, J.B.Salles, pseudônimo de João Batista Salles, o Joãozinho para os amigos, escreve mais um capitulo de sua mais recente novela e em meio àquele ambiente típico de cidade grande, sua imaginação cria asas e fechando os olhos, ele pode até visualizar Maria Clara, a protagonista de sua estória.
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Sua personagem é uma advogada bem sucedida profissionalmente e aos trinta e dois anos, ela sempre viveu e respirou sua profissão. Quando ainda pequena, dizia a todos que quando crescesse, iria ser uma advogada e apesar de sua maneira decidida de afirmar sua intenção, muitos acreditavam que ela poderia mudar de ideia conforme fosse amadurecendo, mas estavam enganados.Ela era daquelas pessoas que quando tomam uma decisão, custe o que custar, não voltam atrás e não medem esforços para chegar onde querem e no caso dela, era tanto, que com o passar dos anos, Maria Clara a cada dia, parecia viver e respirar o Direito, relegando seus lados sentimental, emocional e familiar, ao segundo plano. Desde o primeiro ano da faculdade, ela esqueceu que na literatura, havia outros assuntos além dos jurídicos, ela ignorava as opções de laser que tanto atraiam seus colegas nos finais de semana, achava que entre ir a um cinema, a um teatro ou barzinho para um Happy Hour às sextas, ela certamente tiraria muito mais proveito, se ficasse em casa estudando, o código civil brasileiro.
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J.B. Salles vinha pesquisando para escrever sua novela há muito tempo, ele havia escrito vários livros que eram sucesso no Brasil e no exterior, tinha seu nome conhecido em muitos países da Europa e com isto, veio a tranquilidade financeira e a possibilidade de se dedicar o tempo todo a escrever, coisa que sempre fez por amor. João Batista, não tinha chegado onde estava na vida com facilidade, muito pelo contrario, ele deu duro para conseguir se firmar no mundo literário, coisa muito difícil num país onde ser escritor, é para muitos, sinônimo de que perda de tempo, pela falta de interesse no incentivo à leitura, porque apesar do desenvolvimento do país, isto não mudou muito ao longo dos anos, desde muito tempo atrás. Sentado em frente ao seu computador, ele imagina a sequência de sua trama e nela, Maria Clara esta em sua casa, são altas horas da noite e ela, com pilhas de processos para analisar, pois não contente em trabalhar por vezes até quinze horas por dia, levava serviço para casa e assim, o tempo ia passando e ela se dedicando de corpo e alma à advocacia, sua grande e única paixão.
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Na estória que J.B. estava escrevendo, sua personagem havia se esforçado muito desde que terminou a faculdade de Direito e aos trinta e dois anos de idade, trabalhava num escritório famoso na capital paulista que prestava serviços a instituições financeiras, sua especialidade, eram os processos de execução hipotecária e com sua capacidade profissional, era muito conceituada na empresa, tendo seu nome cogitado para ingressar na sociedade. Contudo, mesmo com todo sucesso profissional, com o prestigio que ela tinha, sua vida pessoal era inexistente, pois apesar da idade, não havia se casado e nem tinha esta intenção, pois acreditava piamente que era melhor estar só do que mal acompanhada e além do mais, um homem na sua vida, só iria ser um estorvo em sua escalada profissional. J.B. se esforça para encontrar um jeito de mudar a vida de Maria Clara na novela, mas tudo que conseguia, era que ela se dedicasse cada vez mais ao trabalho e por consequência, cada vez menos a si mesma como pessoa, como mulher e quem mais sofria com isto sem que ela percebesse, era seu coração, que de certa forma batia por bater, pois ele não conhecia o amor, ele nunca havia ouvido alguém pronunciar esta palavra, pequena, mas que faz uma falta imensa na vida da gente. Maria Clara na ânsia de se mostrar cada vez mais uma profissional de sucesso, não conhecia mais nada além de revisão de processos, elaboração de peças processuais, leitura de publicações, sentenças, elaboração de defesas e cumprimento de prazos fatais, direito era seu único lema e a unica coisa que a deixava excitada, era a perspectiva de poder fazer com que se prevaleça sempre a justiça!
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A vida de Maria Clara se resumia unicamente ao trabalho, o tempo ia passando, sua juventude escorrendo entre seus dedos e mesmo que ela não que ela quisesse ignorar, uma sensação estranha a incomodava, era como se faltasse algo que ela não sabia o que poderia ser, mas quando este sentimento a incomodava demais, ela se atirava ao estudo de processos, mergulhava de cabeça na elaboração de defesas, coisa que fazia com maestria e assim, mesmo sentindo-se incomodada, lutava com todas as suas forças para não parar para pensar na origem, no verdadeiro motivo daquela sensação. Com o tempo, ela foi adquirindo muitos hábitos que aos outros pareciam estranhos, mas ela não percebia o que estava acontecendo, agia sempre como se tudo fosse absolutamente natural. Seu apartamento no Tatuapé, parte nobre da Zona Leste de São Paulo, era um lugar muito agradável, sua decoração era em estilo moderno e o bom gosto de Maria Clara, a personagem, fez de seu recanto uma obra de arte, pois entre móveis modernos e pintura arrojada, havia também quadros de pintores famosos, como Matisse e Leonardo Da Vinci. Ela adorava pequenas estatuetas e vasos chineses, tinha várias peças em seu apartamento, cuja disposição era sagrada, tinham que estar do jeito que ela as colocava e quando alguém, uma visita ou a faxineira as tirava fora de suas posições originais, era motivo para que ela ficasse extremamente nervosa e para que por vezes, se tornasse arrogante, maltratando as pessoas sem pensar nas consequências. Não obstante, além destes descontroles ocasionais, outras manias foram aparecendo na personalidade de Maria Clara. Pela manhã, ela agia sempre da mesma forma, no mesmo horário, com uma precisão incrível, parecia que ela não era mais humana, agia mecanicamente, parecia que havia se tornado uma espécie de robô, fazendo tudo igual, sem mudar nada, numa rotina de enlouquecer a qualquer um.
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Enquanto J.B. dava seguimento à sua novela escrevendo mais um capitulo, do outro lado da cidade, na Zona Norte da capital, num condomínio fechado perto da Serra da Cantareira, Maria Clara, uma advogada, um ser humano da vida real, se preparava para mais uma noite de muito trabalho, ou seja, para dar sequência à analise de vários processos que havia trazido do escritório e é claro, mais uma vez ela iria dormir poucas horas e levantar muito cedo, pois tinha uma audiência marcada para as onze horas da manhã, no Fórum João Mendes Junior, no centro velho da cidade. A noite parecia que nem havia existido, Maria Clara se levantou, tomou uma ducha rápida como sempre o fazia, colocou seu roupão de banho e foi para seu quarto, onde se prepararia para sair em direção ao trabalho, numa jornada inalterável de cinco dias por semana, por longos e longos anos, sem tirar um dia de folga. Quando se colocou frente ao espelho, ela pensou ouvir sua própria voz, mas não deu atenção, começou a se vestir e mais uma vez a voz soou em forma de pergunta, que era mais uma afirmação:
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-Agora você vai vestir aquela saia preta com a blusa branca não vai mesmo?
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Assustada ela percebeu que estava mesmo para pegar as roupas citadas pela voz e perguntou em voz alterada, quem estava falando com ela, quem estava ali em seu quarto, já que sabia o que ela iria usar, só poderia estar vendo seus movimentos, sem que ela soubesse. A voz não respondeu, o silencio que se fez foi aterrador, mas ela mais uma vez resolveu ignorar, achava que poderia estar passando por um momento de stress acumulado e estar ouvindo coisas, mas de novo, a voz falou:
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-Agora você vai calçar aquele sapato preto, de salto alto, aquele, com um lacinho da mesma cor, não vai?
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Maria Clara perdeu a voz, queria gritar, mas não conseguiu, o medo era tanto, que ela começou a tremer, sem saber o que pensar, nem o que fazer. De repente, ela ouve de novo a mesma voz que perguntou:
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-Por que é que você faz todos os dias a mesma coisa, do mesmo jeito?
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-Você não se cansa de ser tão repetitiva, de ser tão monótona?
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-Não acha que mudar alguma coisa em sua vida poderia lhe fazer algum bem?
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-Só para variar um pouquinho, por que você não coloca aquele vestido bege, aquele que mostra bem suas formas e te deixa mais sensual?
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O susto foi demais, Maria Clara perdeu o sentidos, não viu, nem ouviu mais nada, desfaleceu, caindo ao lado de sua cama para acordar horas depois pela manhã, sem saber exatamente o que havia acontecido.
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Na cobertura do arranha céu na região da Paulista, o dia para J.B. já havia se iniciado há algumas horas atrás e naquele instante, ele estava escrevendo no texto de sua novela que sua protagonista levantava-se do chão, onde havia caído quando desmaiou após haver tido uma espécie de alucinação ouvindo vozes, vindas de onde não havia mais ninguém.
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Tanto J.B., o escritor, quanto Maria Clara, a pessoa da vida real, estavam ligados por algo estranho, misterioso e sobrenatural, sem que nenhum dos dois tivesse consciência disto, pois enquanto ele escrevia sua novela, todos os acontecimentos por ele relatados, envolvendo Maria Clara, sua personagem, estavam realmente acontecendo na vida da pessoa, da mulher de carne e osso, Maria Clara, a advogada e a razão disto, só Deus sabe a resposta. Na estória que J.B., sua personagem depois de perder tanto tempo com excesso de trabalho e deixando a vida pessoal de lado, estava ficando neurótica, estava a ponto de ter uma crise existencial, pois a falta de carinho e amor a estava fazendo murchar lentamente e da forma mais dolorida possível, vivendo na mais completa solidão.
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Seguindo com seu carro pelas ruas da Zona Norte em direção ao centro da cidade, a Maria Clara da vida real, se questionava sobre sua sanidade mental e pensava seriamente em procurar um especialista, afinal, ela não tinha tempo para descansar, pois prazo é prazo e se ela não os cumprisse, quem o faria em seu lugar?
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Na novela de J.B., sua personagem tinha vindo com seu carro até o Metro Tatuapé, havia deixado o veículo em um estacionamento nas proximidades da estação e tomado o metro, pois o transito estava terrível naquela segunda feira e ela não tinha tempo a perder, aliás, como sempre, nem era preciso dizer. Dentro do Metro, Maria Clara se sentia angustiada por causa das paradas constantes por problemas técnicos e a cada segundo de todo aquele tempo parados entre uma estação e outra, sua mente brilhante trabalhava com extrema precisão e apesar de sentir seu peito apertado e falta de ar, pensava nos argumentos que iria usar numa defesa que estava elaborando. No meio daquela multidão de gente dentro da composição, ela era somente mais um numero, apenas mais um usuário, sufocado, oprimido pelo sistema e pior, sem nenhuma opção. Entre uma estação e outra, mais uma parada e quando o trem chega na estação Sé, exatamente como todos os dias, quando as portas se abrem é como se um mar de formigas saísse em disparada de um formigueiro sendo atacado com inseticida, todos correm ao mesmo tempo rumo às escadas rolantes e no meio delas, Maria Clara, não passa de mais uma das formigas, exatamente como todas as outras pessoas naquele lugar.
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Dando sequencia ao enredo da novela, Maria Clara a personagem, entra em seu escritório e como não poderia deixar de ser, sua mesa esta parecendo um verdadeiro cartório, processos espalhados em todos os cantos e os estagiários, saindo em busca de mais. Uma de suas manias e praticamente um ritual, era que quando chegava ao escritório, deixava a bolsa em sua mesa e ia para o banheiro ajeitar o cabelo, que aliás, nem precisava, pois seu único penteado a vida inteira, era um coque no alto da cabeça, preso estrategicamente com grampos que o mantinham assim do dia inteiro, afinal, ela não tinha tempo, por que iria se preocupar? Tudo era sempre igual, os mesmos movimentos, o mesmo estilo de roupa para cada dia da semana, o mesmo coque no alto da cabeça, isto sem contar com um par de óculos, com uma armação preta que a envelhecia no mínimo uns quinze anos, ele era tão velho, que estava com a armação torta e quando Maria Clara o usava, sem perceber, ela ficava uma verdadeira figura. J.B. não se conformando com o comportamento de sua personagem, havia parado de escrever e continuava a pensar em como poderia mudar para melhor a vida de sua protagonista, ele não achava justo uma mulher tão jovem ainda como ela, estar vivendo daquela maneira, se é que se pode chamar aquilo de viver.
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Enquanto isto, a Maria Clara da vida real, sentada em sua mesa no escritório, olha fixamente para a página de um processo, ela nada vê, parece estar em transe profundo, não sente, não pensa, parou no tempo, como se à espera de que algo a motivasse a continuar, mas na verdade, era preciso que J.B. continuasse a escrever sua novela, para sua vida seguir adiante.
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No intervalo, durante o período em que parou de escrever, J.B. recebeu um telefonema de seu editor, dizendo que só tinha uma semana para terminar sua obra e que ele deveria fazer dois finais, para que fosse escolhido o melhor, pois a novela teria que ser um Best Seller, como nunca visto no país.

Já eram duas horas da tarde quando J.B. recomeçou a escrever e naquele mesmo instante, a Maria Clara da vida real em seu escritório, saiu do transe em que se encontrava e sua mente como sempre, absorvia cada ponto e virgula do texto que estava examinando e quando percebeu, já eram quase vinte e duas horas, ela nem mesmo havia jantado, mas não fazia diferença, ela não teve tempo para se alimentar, passaria num Mac Donalds e levaria um Big Mac para casa, assim, como sempre, tudo estaria resolvido.
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Enquanto escrevia, J.B. resolveu inserir um novo personagem em seu romance, Pedro Paulo, um estagiário de Direito, um rapaz inteligente, culto, educado e estudioso, mas nem por isto deixava de curtir a vida e tudo que ela pode oferecer, ele tinha dentro de seu coração uma paixão imensa pela vida e seu sonho era encontrar um amor, para ser só seu, para se casar, formar uma família e um dia quem sabe, ter alegria de ser avô, ao lado daquela que ele escolhesse, para ser seu amor, para com ele viver, pelo resto de sua vida. Maria Clara, a personagem, saiu do escritório, passou no primeiro Mac Donalds que encontrou pelo caminho e ao entrar na lanchonete, com a atenção focada no menu, não viu que Pedro Paulo a observava, com olhos de quem se apaixona à primeira vista, fez seu pedido, pediu para fazer embalagem para viagem, pagou rapidamente e saiu do estabelecimento, afinal, ela nunca tinha tempo para perceber outras coisas na vida, mas quando ia abrir a porta de seu carro, um trombadinha a assaltou levando sua bolsa e aterrorizada ela gritou, pedindo por socorro. Na trama da novela, seu novo personagem socorre sua protagonista que havia sido vitima de um assalto e, depois de acalmar a moça se apresenta, ela agradece e pede desculpas pelo incomodo, ele lhe oferece para leva-la em casa, ela recusa a gentileza e agradece mais uma vez.
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Maria Clara na vida real, depois de ser assaltada, exatamente como o foi a personagem de J.B., foi socorrida por um jovem simpático, atencioso, se sentiu melhor e em condições de ir só para casa, trocaram telefones em caso dela resolver fazer um boletim de ocorrência e cada um seguiu seu caminho, mas Pedro Paulo, não consegue tirar a moça de seus pensamentos, pela noite adentro. Quando ela chegou em casa, percebeu que havia ficado com o lenço dele e resolveu ligar pedindo desculpas e para dizer que o devolveria no dia seguinte e foi exatamente o que ela fez.
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Naquele instante, num trecho da novela que J.B. esta escrevendo, o jovem estagiário atende ao telefone e fica muito feliz em descobrir, que quem esta do outro lado da linha, é Maria Clara, a personagem da novela de J.B., a mulher que, nem por um minuto, lhe sai do pensamento. Os dois trocaram algumas palavras e resolveram que entre um prazo e outro, se contrariam no Fórum e se desse tempo, entre uma carga e outra, tomariam um lanche em algum lugar.
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J.B., com sua criatividade e bom coração, estava lentamente mudando o destino de sua protagonista e não é difícil imaginar, que no dia seguinte, os dois se encontraram no Fórum, deram um jeito de almoçar juntos e entre uma troca de ideias sobre vários aspectos do Código Civil, um encontro de olhares, trouxe nova vida ao coração de Maria Clara. Sua personagem não se lembrava mais do que significava sentir o vento soprando e balançando seus cabelos, muito menos, a maravilha que era sentir o calor do sol da manhã, aquecendo suavemente sua pele, afinal, ela não tinha tempo a perder com coisas tão banais.
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Dentro do restaurante, a mulher Maria Clara e advogada na vida real, sentiu por aquele jovem estagiário, uma coisa que não sentia ha muito tempo, pois ela quase nem se lembrava mais como era, ela se sentiu atraída pelo rapaz e não pode deixar de imaginar como ele beijava e seu coração quase seco, pareceu renascer naquele instante e a natureza falou mais alto novamente na vida de uma mulher, que ha muito tempo, não vivia.
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Naquele exato momento, em outro trecho da estória, J.B. escreve que os dois resolvem se encontrar mais uma vez e a estória segue rumo a mais um final feliz, assim como todas suas outras novelas, pois o coração de J.B. é feito de puro amor pela vida e pelos seus semelhantes, tudo que ele escreve é para aquecer corações tristes e feridos. Tudo que ele sempre quis, foi levar aos leitores através de suas novelas, mensagens de paz, de amor, de fé em Deus e na beleza da vida. Pedro Paulo, o estagiário, com seu jeito carinhoso e sua delicadeza, conseguiu ganhar a confiança e o amor de Maria Clara que aos poucos, foi desabrochando como uma flor em manhãs de primavera e toda aquela angustia e sentimentos estranhos que havia dentro de seu coração, foram desaparecendo como tinha que ser.
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Maria Clara a pessoa da vida real, estava descobrindo dentro de si mesma o desejo de ter mais tempo para ela, começou a descansar, coisa que nunca fez em sua vida e não levava mais toneladas de trabalho para casa, era como se aquela advogada, maníaca pelo trabalho e pela profissão, tivesse deixado de existir aos poucos e no lugar dela, estivesse surgindo uma nova mulher, consciente de que para tudo há um limite e que viver não significa ser apenas a melhor profissional, que não significa deixar de amar, significa sim, sentir o coração pulsar mais forte, viver intensamente todas as emoções e deixar a natureza agir por si mesma, que a vida significa, se amar em primeiro lugar, mas principalmente e acima de tudo, amar a própria vida.
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J.B. estava encerrando o penúltimo capitulo de sua novela, só faltava o capitulo final. Já era noite. Sua protagonista estava em sua casa nos braços do homem que a fez despertar para vida e enquanto ele escrevia, Maria Clara beijava Pedro Paulo na vida real, do outro lado da cidade, vendo a lua brilhar nos céus da Serra da Cantareira e J.B. cansado, foi adormecendo e com ele, foram também fechando os olhos, os personagens, Maria Clara e Pedro Paulo, depois de fazer amor, como nunca tinham feito em suas vidas.
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Na manhã seguinte, J.B. foi até a editora e levou sua obra com dois finais diferentes para que seu editor pudesse ler e dar a palavra final, pois a publicação seria feita com o final que ele escolhesse e não aquele que o coração do autor havia pedido a ele para escrever. Uma semana depois, o editor ligou para J.B. dizendo que ele havia escolhido um dos finais, mas que ele teria que mudar algo nele, ele teria que “matar” sua protagonista, vez que todas as novelas que ele tinha escrito haviam sido apenas um grande sucesso nas livrarias, mas para chegar a ser um Best Seller, teria que ter algo diferente, teria que ter um grande impacto no final. J.B. saiu de lá arrasado, pois sua personagem havia aprendido a viver e estava agora desabrochando como uma flor, nos braços de seu grande amor. Ele chegou em casa, sentou se em frente ao seu computador e começou a contra gosto a reescrever o final que o editor havia escolhido, mas de alguma forma, ele daria um jeito de escrever, nada mais, nada menos que um Gran Finale!
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Naquele instante, a Maria Clara a pessoa da vida real, saiu de sua casa cedo como sempre, mas agora com um sorriso nos lábios, os processos e o código civil já não eram sua prioridade, pois seu coração batia calmamente, na cadencia do amor e sua mente brilhante, sabia agora como discernir entre a importância de ser uma profissional bem sucedida e ser uma mulher feliz, de bem com a vida.
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As linhas do texto do final da novela já estavam terminando, sua protagonista havia ido bem cedo ao Fórum de Santana para falar com um Oficial de Justiça, entra agora na rotatória da Praça 14 Bis, na região do Campo de Marte e em sua mente, o olhar apaixonado do jovem estagiário mais uma vez a faz sorrir, ela esta feliz, como nunca havia sido. O transito caótico da região, não consegue dar vazão aos carros de passeio que para complicar, circulam entre Trólebus e caminhões, onde toda a atenção na direção do veículo, ainda é pouca.
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Naquele mesmo instante, Maria Clara, a advogada da vida real, segue dirigindo, com o capo de seu carro conversível recolhido e ela lembra por um breve instante, do tempo em que ela não sabia o que era viver e num ímpeto, solta os cabelos que estão presos no alto de sua cabeça, sente o vento balança-los, acariciando seu rosto e sente na alma este movimento, pensa em quanto tempo ela perdeu, sem apreciar os verdadeiros valores da vida.
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J.B. esta escrevendo as palavras finais de sua novela e de repente, sua protagonista ouve um estrondo, seu mundo que agora era cheio de luz, se torna de novo uma escuridão total, ela não houve, nem pensa mais nada, tudo se apaga, numa fração de segundo. Um ônibus desgovernado, abalroa um caminhão em alta velocidade em certo trecho da rotatória da Praça 14 Bis, o motorista do caminhão tenta controla-lo mas não consegue e ele atinge o carro de Maria Clara, a advogada, a pessoa, a mulher da vida real e ao mesmo tempo, o da protagonista da novela de J.B. e elas foram unidas naquele momento, mais do que nunca, o veículo capota duas vezes e quando para, esta tudo acabado...
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O grande autor, o escritor J.B. Salles, o Joãozinho como os amigos o chamam, deixa uma lagrima sentida rolar sobre o teclado...
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Do outro lado da cidade na vida real, em um quarto de hospital, um par de olhos se abrem lentamente e primeira coisa que enxergam, é uma luz brilhante bem ao longe, como se ela viesse do fundo de um túnel na mais completa escuridão. Aos poucos a luz toma conta da visão daqueles olhos e uma imagem a principio difusa, começa a se formar em meio a ela e aos poucos, vai ficando cada vez mais nítida e se pode ver o rosto de Pedro Paulo e nele, um sorriso acompanhado de uma lágrima de emoção.
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Maria Clara, a advogada, a pessoa da vida real e Maria Clara a personagem e protagonista da novela de J.B.Salles estão vivas, não morreram. Ele as salvou da morte no ultimo instante, nas ultimas linhas de sua novela, e o fez por um único motivo, ele o fez por amor.
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O homem, o escritor, o autor J.B. Salles, mas antes de tudo o Joãozinho, tão querido por todos, não teve coragem de matar sua heroína, ele preferiu ir contra as ordens de seu editor, mudou o final de sua estória sim, mas não matou sua protagonista, porque inexplicavelmente, ele sabia que Maria Clara a advogada e Pedro Paulo, o estagiário, eram de alguma forma pessoas reais, que ele havia lhes dado vida, sentimentos, os fez conhecer o verdadeiro amor e ele não era de forma alguma um assassino frio, calculista e sem coração. Ele preferiu seguir seus princípios e o mais importante, ele preferiu ouvir seu próprio coração.
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A editora se recusou se a publicar seu livro, uma vez que ele estava definitivamente fora do que eles haviam exigido do autor, deram como quebra de contrato e ainda moveram um processo contra ele, exigindo indenização. J.B. Salles, não desanimou, enviou sua novela para outra e editora e logo depois ela foi publicada, tornando-se o maior Best Seller daquele ano, tanto no Brasil , quanto no exterior.
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Maria Clara, a advogada e mulher da vida real, vive hoje feliz ao lado de Pedro Paulo, os dois trabalham juntos desde que ele se formou e acabaram por se tornar sócios da empresa, graças ao excelente desempenho do casal.

Numa noite, em sua casa aos pés da Serra da Cantareira, Maria Clara se lembra de quando ouvia sua própria voz questionando sua maneira de ser e de agir, acha interessante como a mente reage, quando estamos em estado de stress profundo e um sorriso surge em seus lábios, olhando seu Pedro Paulo deitado ao seu lado, dormindo como um anjo, entregue aos braços de Morfeu depois de terem feito amor.
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J.B. por sua vez, bem longe dali, em sua cobertura na mais paulista de todas as avenidas, vive feliz por ter sido honesto consigo mesmo e por ter atendido, ao apelo de seu coração.
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A vida inúmeras vezes imita a fantasia e vice versa, nenhum de nós é capaz de dizer com firmeza que certas coisas são apenas ficção, que são impossíveis de acontecer ou existir, mas Maria Clara, a advogada, a mulher da vida real e Maria Clara, a personagem e protagonista da novela de J.B. Salles, eram por um estranho mistério, uma só pessoa e, se ele tivesse seguido as ordens de seu editor, “matando” sua personagem, teria por consequência sido culpado pelo crime de morte e pior, um crime premeditado, sem perdão.
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Escritores são donos de poderes mágicos inimagináveis, eles tem o poder de dar e tirar a vida de seus personagens, eles detêm o poder no mundo dos sonhos, eles podem quando quiserem nos fazer viajar sem sair do lugar. Através de seus textos, nos fazem viver grandes emoções nunca sentidas e quem nos garante então, que eles não tem o poder de mudar o rumo de nossas vidas, de nossos destinos?
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Fica no ar uma pergunta:
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Se J.B. Salles, o João Batista Salles, apenas o Joãozinho para os amigos fosse outra pessoa, Maria Clara a advogada, estaria hoje viva e feliz ao lado de Pedro Paulo, o estagiário e o homem e personagem que J.B. colocou em seu caminho e a fez acordar para vida?
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Não se pode viver a vida usando uma máscara, vivendo um personagem para sempre, pode se apenas aprender vivendo a compreender a mensagem embutida no enredo da peça da qual todos nós participamos, assim como a Maria Clara da vida real, aprendeu com Maria Clara, a personagem e protagonista da novela, de J. B. Salles, despertando para vida e para o amor, a única razão de nossa existência e, se ela aprendeu literalmente a viver, deve isto ao autor.
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O maior autor e escritor do universo, escreve todos os textos e roteiros de nossas vidas, para que cada um de nós, se esforce para receber ao menos uma menção honrosa ao final do espetáculo da vida, só depende de nosso desempenho, no papel que nos foi conferido.
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Quem sabe até, dependendo de nossa atuação, venhamos a ser eternizados nos corações da plateia que nos assiste atentamente no palco da vida, mas o mais importante precisa ser dito, quem defendeu a causa de J.B., aquela que a Editora moveu contra ele, não foi um personagem.
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Foi Pedro Paulo, o marido de Maria Clara na vida real e depois do caso encerrado, se tornaram amigos, passaram a frequentar as casas um do outro e num certo dia, num papo mais intimo, Maria Clara contou a J.B. sobre sua vida, sobre seu acidente e de como foi que ela sobreviveu, para viver seu grande amor. J.B. naquele momento, soube no mais intimo de sua alma, que ele havia sido responsável pelo que aconteceu, seus olhos encheram-se de lágrimas, mas se manteve calado, por que há certas coisas na vida, que não tem explicação, muitas vezes e melhor nem tentar, pois o que aconteceu a todos eles, pessoas e personagens, foi uma delas, só Deus, sabe a razão.


Autor:José Araújo